terça-feira, 24 de maio de 2016

O Manuscrito 512. A Cidade Perdida da Bahia: Mito e Arqueologia no Brasil Império.


Uma história interessante da qual aguçou minha curiosidade nas últimas semanas, da quais este artigo completo explica o que seria sobre o Manuscrito 512. Boa Leitura.

Abrigado na Biblioteca Nacional-RJ, encontra-se o documento que representa um dos maiores enigmas arqueológicos do Brasil. Trata-se do Manuscrito 512, que contém o relato de um grupo de bandeirantes que encontrou em meados do século XVIII as ruínas de uma misteriosa cidade perdida no interior da Bahia.

Encontrado por acaso em 1839 por um jovem erudito, Manoel Ferreira Lagos (1816 – 1871) na então Biblioteca da Corte (atual Biblioteca Nacional-RJ) e posteriormente publicado pelo IHGB, o documento traz o subtítulo: Relação histórica de uma occulta e grande povoação antiquissima sem moradores, que se descobriu no anno de 1753.

Oscilando entre uma narrativa com detalhes ora precisos, ora poéticos, o documento descreve as características da cidade em detalhes. Os bandeirantes que saíram de São Paulo se depararam com uma cordilheira cujas montanhas eram tão altas que“pareciam que chegavam à região etérea, e que serviam de trono ao vento, às próprias estrelas”. A entrada era formada por três arcos de grande altura, com inscrições que não puderam então decifrar. No fim da rua principal, havia uma praça, onde se erguia uma coluna de pedra negra, em cujo topo havia uma estátua de “um homem comum, com a mão no quadril esquerdo e o braço direito estendido, mostrando com o dedo indicador o Polo Norte. As casas da região estavam abandonadas, sem nenhum móvel ou vestígio de presença humana recente. Haviam detalhes que remetiam a civilizações antigas, como uma fonte e um pátio com colunas circulares em cada uma das 15 habitações que circundavam um grande salão.

Pablo Villarrubia Mauso, que fez uma expedição em busca da cidade perdida para a revista Sexto Sentido, acredita tê-la encontrado em Igatú, município de Andaraí, em plena Chapada Diamantina, no Estado da Bahia, seguindo orientação do explorador alemão Heinz Budweg, que afirma que as ruínas são fruto de construções vikinks do ano 1000. Outra hipótese diferente é do linguista e explorador Luis Caldas Tibiriçá. Segundo ele,

“Alguns edifícios assemelham-se aos da Idade Média da Etiópia. As inscrições encontradas poderiam ser do idioma gueez, dos etíopes, os mesmos que, em suas crônicas, falavam de terras distantes que alcançaram com suas embarcações”

Tibiriçá descarta a hipótese das ruínas serem antigas construções dos próprios nativos indígenas.

Alvo de muitas controvérsias, o documento ainda gera muitas especulações. Não se sabe ao certo a origem da cidade descrita no manuscrito, sua exata localização e quem foram seus habitantes, nem o seu fim. Ficou apenas o relato, e algumas hipóteses que ainda precisam ser devidamente comprovadas, que fazem deste caso um dos maiores mistérios brasileiros.

RESUMO.

O artigo investiga as origens do mais famoso mito arqueológico brasileiro, "a cidade perdida da Bahia", e sua importância paradigmática para o segundo império.

Em um canto esquecido da Livraria Pública da Corte (atual Biblioteca Nacional), um manuscrito muito antigo e carcomido foi descoberto em 1839 pelo naturalista Manuel Ferreira Lagos, e entregue ao IHGB. Tratava-se do documento hoje conhecido como 512, com o título de Relação historica de uma occulta, e grande povoação antiquissima sem moradores. Sem saber, Lagos havia desencadeado o surgimento da mais conhecida fábula arqueológica do Brasil. Uma miragem fantástica, pela qual diversos intelectuais dedicariam todos os esforços para tentar solucioná-la.

Sapiente da enorme importância desse documento, o cônego Januário Barboza logo o publicou integralmente na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Não sem antes realizar um pequeno prefácio, onde apelou para o estudo das antigas tradições, reconstituindo a saga de Robério Dias, o Muribeca ¾ preso por não revelar ao governo português a localização de ricas minas de prata na Bahia. Mesmo sem nenhuma comprovação da realidade desta cidade, para os entusiasmados intelectuais tal Relação histórica era um vestígio que poderia conduzir a grandes descobertas. É muito importante a análise deste documento na conjuntura de sua época, também para entendermos mais a fundo a receptividade por parte do Instituto no Oitocentos. Inicialmente resumiremos a narrativa, definindo em seguida algumas hipóteses sobre o tema.

A ORIGEM DO MITO.

O subtítulo da Relação esclarece o motivo da expedição pelos bandeirantes, a busca das minas de prata de Muribeca, na qual ficaram dez anos vagando nos sertões da Bahia. A estrutura da aventura não possui praticamente nenhum elemento fantástico, típico dos relatos quinhentistas sobre o Eldorado amazônico. Nem seres extraordinários, nem uma geografia pela qual o maravilhoso ditava totalmente as regras.

O início do relato descreve o encontro de uma montanha muito brilhante, devido à existência de cristais. Admirados pelo local, os bandeirantes no entanto não conseguiram escalar a formação rochosa. Um negro da expedição, ao tentar alcançar um veado branco (albino?), encontrou um caminho calçado por dentro da montanha, pelo qual a excursão seguiu adiante. Do alto da montanha, avistaram adiante uma "povoação grande, persuadindo-nos pelo dilatado da figura ser alguma cidade da Costa do Brazil"1. Após certificarem-se de que o local estava despovoado, iniciaram sua exploração.

O acesso para a cidade era feito por um único caminho de pedra. A entrada da urbe era formada por "tres arcos de grande altura, o do meio he maior, e os dous dos lados são mais pequenos: sobre o grande, e principal devizamos Letras que se não poderão copiar pela grande altura". Na cidade, as casas eram feitas com muita regularidade e simetria, parecendo "huma só propriedade de cazas, sendo em realidade muitas, e algumas com seus terrados descubertos, e sem telha, porque os tectos são de ladrilho requeimado huns, e de lages outros". Percorrendo o interior destas habitações, os bandeirantes não encontraram nenhum vestígio de móveis ou qualquer outro objeto. Ao final da rua, depararam com uma praça regular, que possuía em seu interior uma:

(...) collumna de pedra preta de grandeza extraordinaria, e sobre ella huma Estatua de homem ordinario, com huma mao na ilharga esquerda, e o braço direito estendido, mostrando com o dedo index ao Polo do Norte; em cada canto da dita Praça está uma Agulha, a imitação das que uzavão os Romanos, mas algumas já maltratados, e partidos como feridas de alguns raios.

Sobre o pórtico principal da rua, também situava-se uma "figura de meio relevo talhada da mesma pedra, e despida da cintura para cima, coroada de louro" e com inscrições abaixo do escudo. Nos lados esquerdo e direito da praça existiam edifícios imensos. O primeiro parecia, segundo os narradores, um templo com muitas figuras em relevo nas suas laterais, como cruzes e corvos. Outras partes da povoação, jaziam em grande escombro e muita ruína, que teria sido causado por um terremoto. Próximo à praça descrita, também havia um grande rio. Seguindo por ele, os bandeirantes após três dias encontraram uma enorme catadupa (cachoeira). Neste local, ocorriam grandes quantidades de furnas, muitas cobertas com lages e inscrições. Ainda entre as ruínas foi encontrada uma moeda de ouro muito grande, com "a imagem, ou figura de hum moço posto de Joelhos, e da outra parte hum arco, huma coroa, e huma sétta". Após chegarem na região entre os rios Paraguaçu e Una, os expedicionários enviaram uma carta ao Rio de Janeiro, originando o manuscrito original.

Inicialmente, devemos perceber que estas ruínas não pertencem ao modelo urbanístico colonial português ou espanhol. A possibilidade de terem encontrado algum centro de mineração, abandonado após o término da exploração, também é muito remota. Na metade do século XVIII, a maioria dos complexos mineradores ainda estava em atividade na Bahia. Inscrições, templos, pórticos e estátuas nos levam ao encontro de uma origem mediterrânea clássica, portanto, imaginária do relato. O problema principal é determinar como foi o contato com esse modelo europeu. A primeira metade do Setecentos foi marcada por uma grande efervescência clássica na Europa, antecipando uma matriz cultural para a data do manuscrito: a comparação das praças com as construídas pelos romanos; estátuas com coroa de louros; pórticos grandiosos; moedas de ouro e citações de acidentes geográficos ocidentais ("Alpes e Pyrinéos"; "Nillo"). Tudo isso nos leva a crer que o autor do relato estava profundamente inserido no contexto das descobertas arqueológicas e culturais que estavam sendo efetuadas na Europa ao início do séc. XVIII.

Mas existem também dois elementos na narrativa que fazem parte de tradições folclóricas muito mais antigas, advindas do séc. XVI. A primeira é referente aos montes de cristais reluzentes, no início do relato. Aventureiros descreveram pelo interior brasileiro a existência de montanhas e serras resplandescentes, associadas a metais e pedras preciosas. Essa tradição formou, a partir do Setecentos, o fundamento para alguns folclores bandeirantes, como a Lagoa Dourada (Eupana e Sabaroboçu). O historiador Buarque de Hollanda acreditava que essa tradição esteve intimamente relacionada com o mito do Paraíso Perdido, para o qual funcionaria como uma espécie de antecipação do maravilhoso: "da montanha que refulge passa-se muitas vezes sem dificuldade aos castelos, cidades, casas e igrejas de cristal, tão freqüentes nas clássicas visões do paraíso"2. Graças ao avistamento dessa montanha fascinante, os bandeirantes puderam localizar as ruínas baianas. Também muitas narrativas de cidades imaginárias possuíam uma estreita vinculação com montanhas feitas com metal precioso, como por exemplo o Eldorado. Outra tradição de origem colonial diz respeito a certa estátua, encontrada na Ilha dos Corvos (Açores), cujo folclore sobreviveu até o séc. XVIII, em forma literária ou poética. Segundo Damião de Góes, em sua Chronica do Principe D. Joam (1567), durante o reinado de D. Manuel, navegadores em incursão pela mencionada ilha descobriram, no cume de uma serra, uma imensa estátua de um homem vestido de bedém (túnica mourisca), sem barrete, com o braço estendido e a mão apontando para o poente. Abaixo da estátua foram ainda avistadas inscrições misteriosas, sem possibilidades de tradução. Já o poema Caramuru, de José de Santa Rita Durão (1781), também mencionou a célebre estátua: "E na ilha do Corvo, de alto pico (...) Onde acena o país do metal rico (...) Voltado estava ás partes do occidente, d'onde o aureo Brazil mostrava a dedo"3. Na cidade perdida da Bahia também existiria uma estátua central, cujo braço estendido apontava o dedo para o norte, com certas inscrições indecifráveis no mesmo local. Percebemos com essas duas tradições que o autor do manuscrito estava perpetuando um folclore mais antigo, incorporado ao universo dos bandeirantes e exploradores. Mas os elementos da arqueologia setecentista foram muito mais determinantes na estrutura do texto, como já mencionamos.

A descoberta e escavação de Herculanum iniciou-se em 1710, mas foi com a confirmação de seu nome e origem (1738) que estas ruínas romanas tornaram-se muito famosas. Pompéia foi escavada, por sua vez, a partir de 1748, e sua identificação ocorreu apenas em 1768. Podemos também estabelecer uma relação destas ruínas romanas, principalmente Herculanum, com a cidade do manuscrito, ao perceber que o terremoto citado pelo bandeirante é uma catástrofe natural semelhante ao vulcão (no caso, o Vesúvio). A natureza interferindo na obra humana. Outra questão é identificar como essas matrizes foram conhecidas no Brasil. A primeira publicação em larga escala dos vestígios romanos apareceu somente em 1756, com o livro L'antichità romana de Piranese, três anos após a descoberta da cidade baiana. É possível, deste modo, que o autor da imaginária cidade tenha estado anteriormente na própria Europa em contato com esse panorama cultural.

O pesquisador Hermann Kruse e o historiador Pedro Calmon estabeleceram como autor do manuscrito em questão, o bandeirante João da Silva Guimarães. Percorrendo os desconhecidos sertões da Bahia entre 1752-53, ele teria noticiado a descoberta das muito procuradas minas de prata de Robério Dias, justamente na região dos rios Paraguaçu e Una4. Uma similaridade de data e localização com a prescrita na Relação da cidade abandonada. Exames efetuados pela Casa da Moeda dois anos depois, porém, declararam que as minas não passavam de minérios sem nenhum valor. Aturdido, Guimarães foi conviver com os índios, desaparecendo após 1764. A obra de Pedro Calmon nos forneceu outra pista valiosa para a elucidação da origem histórica deste mito. Um dos auxiliadores das buscas de Guimarães foi o governador da província mineira, Martinho de Mendonça de Pena e de Proença. Examinando sua biografia, descobrimos que ele tinha sido bibliotecário, poliglota e filólogo, membro da Real Academia de Lisboa.

Além de ter proferido uma palestra sobre megalitismo português (Discurso sobre a significação dos altares rudes e antiquissimos, 1733), Proença também realizou, em 1730, uma investigação sobre as misteriosas inscrições de São Tomé das Letras, em Minas Gerais. A partir de 1738, estes caracteres se tornaram muito famosos, circulando cópias por toda a província. Ao analisarmos uma dessas reproduções, percebemos grande semelhança de alguns glifos com os da cidade perdida, principalmente cruzes e letras latinas. Além disso, foram interpretados por um dos autores da reprodução, Mateus Saraiva, como sendo caracteres romanos. No período em que circulavam as cópias, o bandeirante João Guimarães abandonara Vila Rica e partira em missão exploratória para as regiões dos rios São Mateus, Doce e Pardo, todos na província mineira. Atacado por índios, foi então auxiliado pelo governador Martinho Proença. Talvez a origem do mito esteja nesse antigo contato, entre um bandeirante ávido por ouro e um acadêmico interessado em arqueologia. Proença tinha todas as condições para criar a imagem de uma cidade em ruínas semelhante às romanas, repleta de inscrições, enquanto Guimarães desejava a todo custo encontrar riquezas sem fim. O acadêmico morreu em Lisboa (1743), e João Guimarães anunciou oficialmente, em 1752, a descoberta de minas de prata pelo interior baiano, escrevendo em seguida o manuscrito da cidade perdida.

O INÍCIO DAS BUSCAS.

Os investigadores do Instituto Histórico não conheciam os autores do manuscrito, mas mesmo assim a narrativa foi encarada como um fato totalmente verdadeiro. Ao contrário das tribos indígenas, habitantes de rudimentares choupanas, essas ruínas aventavam a possibilidade de uma antiga civilização muito adiantada ter ocupado a jovem nação. Imediatamente, todos os esforços em encontrar esses maravilhosos vestígios foram efetuados. Em uma reunião do IHGB, o autor da descoberta do manuscrito, Manuel Lagos, oferecera-se para litografar e doar 500 exemplares das inscrições da cidade perdida.

Ao completar uma ano de fundação em 1839, o Instituto Histórico apresentava sob a forma do relatório de seu secretário os resultados obtidos durante esse percurso. Se não eram completos, ao menos revelavam uma franca esperança no cumprimento das suas metas básicas de recuperar as origens da nação. Ao citar estupendas descobertas arqueológicas em países muito próximos do Brasil, como Palenque no México e fortificações no Peru, Januário Barboza deixou claro que tais vestígios também podiam ser encontrados no império. A Europa recentemente maravilhara-se com publicações sobre ruínas maias, como Vues des Cordillères et Monuments deus Peuples Indigènes de l'Amérique (1810, de Humboldt), Antiquites of México (1831, de Lord Kingsborough), e Voyage pittoresque et archéologique dans la province d'Yucatan et aux ruines d'Itzalane (1838, de Jean Waldeck). É claro que os intelectuais brasileiros também esperavam encontrar indícios tão promissores nas desconhecidas florestas do Brasil5.

Advindo o novo ano de 1840, surgiram novas referências sobre o intrigante tema. Dois eruditos, o cel. Ignacio Accioli Silva e A. Moncorvo, residentes na Bahia, enviaram dados baseados em descrições regionais:

(...) sobre a cidade abandonada nos sertões desta província (...) que não parece ser fabuloso, pelas coincidentes noticias de varios antigos moradores, e exploradores dos sertões, pois por tradição se falla em uma grande Povoação, ou Cidade desprezada e que dizem a habitáram Indios e negros fugidos6.

Na tentativa de conseguir informações sobre a antiga cidade, os investigadores acabaram por contatar manifestações do folclore de muitos séculos. Conhecidas pela denominação de cidades encantadas por toda a América Latina, foram metamorfoses de antigos mitos coloniais, como o Eldorado e tradições bandeirantes, formando um rico e elaborado imaginário popular. Muitas destas tradições de cidades encantadas sobrevivem até os dias de hoje por meio da transmissão oral, mas algumas também foram incorporadas à literatura e à poesia, como Maiundeua e Axuí (Pará e Maranhão). Sendo um campo praticamente inexplorado pelos historiadores, é muito difícil elaborar análises sem maiores conhecimentos de fontes. Resta apenas tentar criar hipóteses entre essa aludida entrevista dos eruditos com os populares, ou seja, como as tradições coloniais sobreviveram na forma folclórica do século XIX. Essas cidades encantadas teriam sofrido influências do relato de Guimarães?

Voltamos novamente ao livro de Pedro Calmon. Nele, o historiador afirmou que após a morte do bandeirante João Guimarães em 1766, rumores sobre ruínas já tinham sido criados por populares. Quando se iniciou a grande extração de diamantes na Bahia, a partir de 1844 na região da Chapada Diamantina, o folclore estava bem consolidado. Mas também não podemos descartar a interferências de outras tradições antigas, como as de redutos indígenas e quilombos pela província, como a própria entrevista dos membros do IHGB deixou claro. Na Bahia ocorrem diversos vestígios de antigos quilombos, como nas regiões de Bom Jesus da Lapa e Rio das Rãs. Relatos imaginários também são muito freqüentes por toda a região. Em Lagoa Santa (MG), existe a fábula de uma cidade submersa através de uma catástrofe, muito similar ao mito de uma cidade submarina de esmeraldas que ocorre na área do médio rio São Francisco, na Bahia. Percebemos, desta maneira, que o mito popular foi reinterpretado pelo imaginário erudito, reforçando as convicções vigentes sobre um passado grandioso prestes a ser revelado.

Nesse início de 1840, para além do entusiasmo dos eruditos filiados ao Instituto, também os estrangeiros estavam profundamente interessados na confirmação das enigmáticas ruínas. Uma expedição naturalista provinda de Copenhague, a bordo da fragata Bellone, teve como passagem o porto de Salvador. Composta pelos militares Suenson e Schultz, além do botânico Kruger, encarregados de examinar a misteriosa localidade. Não chegaram nem a concretizar a expedição ao local, por falta de maiores informações geográficas: "Mais rien ne fut exécuté, et nous en sommes encore réduits aux conjectures sur cette antique cité"7. O grupo também obteria informações do arcebispo da Bahia, Romualdo Seixas, que no ano anterior fora citado como membro do IHGB na categoria de sócio correspondente. Mais tarde viria a ser conhecido como marquês de Santa Cruz. Importante personagem no cenário político daquele momento, como primaz do Brasil, foi quem presidiu em 1841 a solenidade de sagração de D. Pedro II. Ainda durante os anos 40, Seixas seria admitido como sócio na Sociedade Real dos Antiquários do Norte, demonstrando seu grande interesse por assuntos arqueológicos.

Os dados trazidos do interior da Bahia por Moncorvo e Accioli, além do interesse do arcebispo Romualdo, seriam reforçados por uma inesperada carta de Munique, assinada por Carl Von Martius. Constituindo-se na gênese da futura dissertação Como se deve escrever a História do Brasil, o documento foi lido com muito interesse na sessão realizada em agosto de 1840. No periódico da agremiação, publicaram-se determinados trechos do manuscrito, procedimento que segundo nossa interpretação, procurava demonstrar somente as idéias mais importantes para as metas projetadas nesta época.

A primeira imagem esboçada por Von Martius foi a respeito de um passado muito remoto para os primeiros brasileiros. A confirmação das diferenças civilizacionais entre essa povoação e os indígenas contemporâneos se fez através da idéia de contingente populacional e padrões de nobreza. Essa primeira idéia já havia sido levantada, de maneira oposta, pelos deflagadores da inferioridade americana durante o Setecentos. Para Buffon, Raynal e De Pauw, as informações dos cronistas e viajantes sobre as sociedades ameríndias eram falsas, pois a população das cidades pré-colombianas seria muito pequena, com os índios espalhados pelo campo. A concepção geológica de um continente novo contrariava a idéia de uma grande população urbana na América. Com isso, uma remota ancestralidade e uma grande população seriam fundamentais para definir a outrora sociedade que existiu no Brasil.

As provas desse suposto tempo antigo, segundo Von Martius, seriam encontradas na mitologia indígena e em vestígios arqueológicos nesta região central do nosso País. Nada mais conveniente para as metas do Instituto do que essas hipóteses que encaminhavam para uma formidável descoberta em solo brasileiro. Na mesma sessão, o historiador Varnhagen declarou: "uma proposta para methodicamente serem recolhidas pelo Instituto as possiveis noticias sobre essa grande geração decadente"8. Conciliando dessa maneira as pesquisas sobre as inscrições fenícias da pedra da Gávea (dessa mesma época), a cidade da Bahia e as observações do sábio alemão, o Instituto sentia-se seguro para estabelecer um panorama otimista de nossos vestígios, determinando para todos os agremiados a busca dessa geração perdida.

UM VIAJANTE DO MARAVILHOSO.

Conscientes de que a glorificação monumental só poderia ocorrer através de explorações, os membros do Instituto nomearam em 1840 o cônego Benigno José de Carvalho e Cunha para encontrar a cidade perdida da Bahia. Quais foram os motivos da escolha deste religioso? As pistas nos levam a um contexto externo ao IHGB. Benigno era professor, poliglota, especialista em línguas orientais e padre subordinado ao arcebispo Romualdo Seixas na Bahia. Suas ligações eram muito profundas, tanto que em 1840 dedicou um de seus livros (A religião da razão) a este arcebispo. As razões para o interesse de Seixas para com a cidade perdida são obscuras. O mais provável é que mantivesse um controle sobre todos os fatos científicos e culturais reinantes em sua província, indicando desta maneira o cônego Benigno para encontrar as tão almejadas ruínas.

Ainda no ano de 1840, em princípios de novembro, Benigno de Carvalho chegou a Salvador em seu período de férias. Neste local, recolheu informações de viajantes que estiveram no interior da Bahia, como o desembargador Mascarenhas de Assis e o dr. Remigio Andrade. O cônego encontrou algumas contestações da legitimidade de sua expedição. A credibilidade da cidade perdida, apesar de sua grande aceitação acadêmica, não era um fato absolutamente genérico. Sem desanimar, negou o caráter fabuloso das ruínas baseado principalmente na estrutura narrativa do documento bandeirante. Percebe-se que Benigno concebia o manuscrito como um autêntico diário de campo, onde os fatos descobertos foram sendo narrados fielmente. Ao mesmo tempo uma história muito simples e ingênua, o documento incluiria detalhes estranhos ao universo bandeirante, como as supostas inscrições avistadas: "como lembrariam a mineiros os caracteres gregos, ou runnos" 9? Essa lógica interna, também percebida pelos outros membros do Instituto e até alguns estrangeiros, constituiu a prova mais tangível da existência do fascinante local.

A primeira problemática colocada em campo por Benigno foi a localização exata do sítio. Concentrando-se no único detalhe geográfico mencionado no documento, que relata a existência de um riacho de frente à cidade, pelo qual os aventureiros desceram e após três dias chegaram aos rios Paraguassu e Una, firmou sua hipótese, na qual o lugar indicado pelo documento seria a serra do Sincorá. Em seguida passou a obter maiores referências sobre essa serra com os moradores das regiões litorâneas. Ainda na cidade de Salvador, o cônego realizou diversos estudos hidrográficos, todos baseados apenas nos mapas do período. Acreditava o cônego que gastaria 14 dias seguindo o mesmo trajeto dos bandeirantes até a cidade, mas como estava no final das férias, começou a abandonar a idéia de concretizar efetivamente a busca no distante recanto. Planejava ir somente até a cidade de Valença, a maior vila da região, onde obteria maiores informações sobre o rio Braço do Sincorá, se possuía cachoeiras e minas ao seu redor, confirmando o relato dos bandeirantes.

Chegando na cidade de Valença em 5 de fevereiro de 1841, o padre foi acompanhado de um rapaz chamado Ordinando, recebendo um salvo conduto do presidente da província. Que não chegou a ser utilizado, pois devido à grande quantidade de chuvas na região, a expedição foi cancelada. O resto de sua estada na cidade histórica de Valença foi ocupado recolhendo tradições orais dos antigos moradores. O primeiro entrevistado foi Antonio Joaquim da Cruz, que tinha viajado pelas regiões interioranas da Bahia. Afirmava que teria subido o Sincorá e que a cidade perdida ficaria localizada em uma mata na direção leste, mas não teve coragem para adentrá-la. Confirmou ainda a existência de uma grande cachoeira e de profundas minas que emitiriam um estranho estampido. De outros moradores de avançada idade recolheu informações sobre uma cidade muito antiga destruída por um

(...) terremoto, outros que por alluvião (inundação): alguns affirmam que ella existe, mas que nella está um dragão que traga quem lá se approxima; outros dizem que quem lá vai não volta; e a este respeito me contaram uma anedocta de certo coadjutor (sacerdote) que foi a desobriga (visita clerical) para aquelles sitios, e nunca mais appareceu, etc. etc.10.

Observamos aqui alguns exemplos de cidades encantadas presentes no folclore baiano. Todos estes aspectos sugerem uma origem muito mais antiga, anterior à bandeira de João Guimarães no séc. XVIII. Isso pode ser conferido, por exemplo, com o desfecho catastrófico sugerido para a cidade. Terremotos e inundações foram muito comuns em outras cidades imaginárias, como a Atlântida grega. Também tiveram grande influência simbolismos bíblicos, a exemplo do dilúvio universal, por sua vez muito populares nas teorias eruditas a partir do Setecentos, explicando a origem da humanidade. O aspecto do desaparecimento de pessoas que visitaram a cidade também é percebido em outras localidades imaginárias sul-americanas, como a Ciudad de los Césares. No Brasil, temos os casos de Maiandeua (Maranhão) e Grozongo (Pernambuco), cidades fabulosas que desaparecem sem deixar vestígios. No Estado da Bahia, o folclore de taperas abandonadas que se afundam no chão ainda é muito comum11.

Todos estes testemunhos colhidos por Benigno reforçaram suas convicções e hipóteses, confirmando a situação da cidade perdida na região do Sincorá. Planejando a futura expedição para o final de 1841, esclareceu em uma carta enviada em fevereiro ao Instituto, que essa jornada seria muito "longa e perigosa por causa das serpentes e onças, em que abundam aqueles sitios; há selvagens, porêm mansos". Apesar destas aparentes dificuldades, solicitou à agremiação carioca subsídios financeiros para a execução da viagem em pelo menos dois contos de réis.

Entraram em cena mais uma vez os poderosos aliados de Benigno. Um parecer realizado pela comissão de história do Instituto estipulou a publicação dos documentos enviados pelo padre, além do pedido imediato de verbas ao governo, para o êxito da expedição12. E caso não fosse possível a realização de um mapa da viagem, que ao menos os responsáveis publicassem um relatório detalhado da mesma. Em julho foi impressa a memória de Benigno na Revista do IHGB, no mesmo mês da coroação do imperador D. Pedro II.

Após este agitado período político, o arcebispo Romualdo Seixas foi efetivado como membro honorário do Instituto, sendo motivado a auxiliar o bom êxito da busca ao interior da Bahia. Com a influência de importantes personalidades, certamente a empresa não demoraria a colocar-se em campo. No mês de outubro Benigno enviou outra carta para a capital, desta vez tratando de minas descobertas recentemente na região da serra da Mangabeira (BA), acreditando que seriam as minas de Muribeca, muito perseguidas pelos bandeirantes. Além de interesses políticos, cada vez mais a planejada viagem a campo do cônego cercava-se de intenções econômicas.

No início de novembro, o presidente do IHGB (visconde de São Leopoldo), realizou uma petição ao imperador, solicitando financiamento para a expedição. A importância desse empreendimento foi ressaltada pelo documento principalmente pelo seu caráter utilitário. Caso falhasse em seu objetivo maior, ao menos a exploração poderia encontrar "terrenos incultos, e ainda não desafiados no interior do Brasil"13. Situando-se em uma região pouco conhecida, a cidade perdida poderia fornecer elementos de ordem mineralógica, como também terrenos para a agricultura. Competindo com o grande tema da Revista do IHGB ¾ a etnografia indígena ¾ as pesquisas do espaço geográfico nacional sempre foram muito destacadas. A publicação de narrativas de viagens, explorações, novas delimitações cartográficas e territoriais, contribuiriam para a construção do império tropical. Todo estudo para desmantelar o incógnito e o vazio de conhecimento era sempre muito incentivado pela elite.

É evidente que as regiões próximas à capital tiveram um interesse imediato por suas importâncias econômicas ou políticas. Em uma carta remetida ao secretário perpétuo, um viajante mineiro enviou dados do

(...) deserto que separa as povoações da provincia de Minas Geraes, e às povoações do littoral nas Provincias do Rio de Janeiro, Espirito Sancto, e Bahia (...) derramando algumas luzes sobre os pontos pouco conhecidos dessa interessante porção de territorio ainda oculto14.

A província da Bahia, nesse contexto, tinha uma situação estratégica. Somente o seu litoral era bem conhecido nesse período, e a expedição de Benigno coincidia com essa necessidade de desvendar o que se denominou de deserto: tudo aquilo que não foi ainda explorado, abrangendo florestas, matas, rios e montanhas. Na realidade, estamos tratando aqui de uma categoria cultural muito mais ampla, a imagem do sertão. Mais do que simples locais interiores do império, são "espaços desconhecidos, inacessíveis, isolados, perigosos, dominados pela natureza bruta e habitados por bárbaros, hereges, infiéis, onde não haviam chegado as benesses da religião, da civilização e da cultura"15. Extraviada no incógnito, a cidade perdida da Bahia esteve associada com a imagem do sertão. Um exemplo pode ser percebido com o coronel Ignácio Aciolli Silva. Especialista nos temas da província baiana, estava inserido nesse contexto de elucidação do espaço geográfico e, ao mesmo tempo, no estudo da cidade perdida. Em 1840 recolheu informações populares sobre esse tema, e tencionava descobrir outros dados sobre os vestígios de antigas habitações, que teriam sido ultimamente encontrados nas escavações de diamantes da serra do Assuruá. O sertão torna-se, ao mesmo tempo, um empecilho para a civilização ¾ por seu caráter de nulidade territorial, e um potencial econômico ¾ pode revelar imensas riquezas. A busca de ruínas implicava solucionar essas duas problemáticas, completando a proposta da unidade territorial: "A motivação para pensar o Brasil é a convicção de uma nação incompleta, por isso o dito sobre o sertão se faz com ares de diagnose e, mais, reveste-se de acusações à sua permanência enquanto fardo para o país"16.

Outro aspecto ressaltado na petição ao imperador foi a respeito da expedição de Benigno como interiorização da civilização. Buscou-se através do avanço científico a dominação do espaço selvagem, mas também a propagação dos ideais de civilidade, moral e religião. Afinal o buscador da cidade esquecida não foi um padre? O mesmo princípio de algumas expedições naturalistas e de pacificação indígena, que além do explorador/cientista sempre participava um religioso. Em Benigno essa função foi unificada dentro do contexto de uma missão heróica semelhante à dos jesuítas, ao interferirem na realidade americana durante o período colonial. Mesmo o documento dirigido ao imperador parece apontar nas entrelinhas esse fato. Para o visconde de São Leopoldo, a civilização estacionou nos locais onde justamente existiram as missões jesuíticas "e que não são de certo as que devem constituir os limites occidentais de nosso império"17.

Quatro dias depois da solicitação, prontamente houve uma resposta positiva por parte do imperador. Novamente se manifestou o presidente do Instituto, muito otimista por certo ao verificar que sua petição fora aceita. Recentemente coroado, D. Pedro II iniciou seu relacionamento com a construção de uma identidade nacional, mas também com a política cultural que se praticava nesse período. Com isso, ao mesmo tempo em que o imperador participava do mais entusiasmado e pretensioso projeto do Instituto na sua primeira década de existência, também refletia sua credibilidade na existência de uma remota civilização esquecida em nosso País. E também, nada mais conveniente ao seu recente governo do que a descoberta de imponentes ruínas no remoto brasílico.

No início de dezembro, finalmente o obstinado padre Benigno colocou-se em campo. Desta vez conseguiu chegar à região pretendida, onde permaneceu por muito tempo. Enquanto a capital aguardava com ansiedade qualquer notícia de seus resultados, a expectativa criava muitas hipóteses favoráveis aos propósitos da agremiação. Na terceira sessão pública de fundação do IHGB, em dezembro de 1841, o imperador novamente compareceu, revelando o prestígio dessa solenidade. Comparados com os anos anteriores, os discursos e conferências foram muito mais exaltados. Depois de três anos de atividades, as pesquisas começavam a formar uma sólida crença em um passado capaz de rivalizar-se com o das grandes nações, inspirando também a formação de novos rumos para o futuro. Totalmente convicto disso, o presidente do Instituto, visconde de São Leopoldo, realizou um discurso incitando a procura de novas fronteiras do conhecimento, pela qual a conquista de descobertas inusitadas inflamariam o espírito humano. O desfecho da palestra glorificou o mecenato imperial18.

Influenciada pelo conceito francês de civilização, a elite imperial procurava demonstrar constantemente a ligação do Brasil com o Velho Mundo e sua cultura. Desta maneira, utilizava um parâmetro de comparação com outras formas de sociedade, como a dos ameríndios, para poder expressar seus próprios valores e se auto-afirmar. Como o próprio visconde afirmou, o imperador conclamou os resultados do Instituto, na expectativa futura da nação alcançar os patamares superiores do mundo contemporâneo. A descoberta da cidade perdida refletiria diretamente nesta imagem do Brasil: uma nação em progresso, portadora de vestígios arqueológicos, conhecimentos científicos, ideais e costumes elevados. A própria imagem de D. Pedro II foi relacionada, mecenas culto que patrocinou o possível desvendar da maior glória pretendida nesse período.

O próximo intelectual a pronunciar-se, o cônego Januário Barbosa, manteve os mesmos ideais. Relatando as principais atividades, projetos e descobertas nos últimos três anos, o secretário perpétuo não omitiu o fato dos temas indígenas terem ocupado a maior parte das preocupações da instituição. Mas qual o motivo desse grande interesse? O próprio Barbosa esclareceu:

(...) investigar o gráo de civilisação a que haviam chegado os povos do novo Mundo antes de apparecerem ás vistas de seus descobridores, força era que nos costumes dos Indios procurassemos o fio, que nos deve conduzir a tempos muitos mais anteriores19.

Se as pesquisas etnográficas e a literatura conduziam a um interesse objetivo pela imagem do indígena heróico, puro e honroso, os estudos arqueológicos tentavam encontrar indícios muito mais promissores. A grande antiguidade desses possíveis vestígios foi sempre mencionada como um indicativo de sua sofisticada civilização. Pois as sociedades pré-cabralinas ¾ encontradas pelos europeus no período de descobrimento ¾ eram muito primitivas (aos olhos dos nossos nacionalistas), com os grandes acontecimentos do passado esquecidos pelos seus habitantes, confiantes apenas na tradição oral. Nesta situação, as investigações etnográficas pouco poderiam contribuir para elucidar a questão do fio condutor para a geração dos tempos antigos. Para reforçar suas hipóteses, Januário Barbosa citou Von Martius, repetindo toda a sua longa carta publicada um ano antes no mesmo periódico.

Devemos perceber que esses argumentos procuravam legitimar politicamente a expedição do cônego Benigno, recentemente enviada pelo interior baiano com os custos imperiais. Louvado por Barbosa como gênio da arqueologia, o religioso foi caracterizado como uma espécie de herói por ter-se embrenhado em tão cerradas florestas e ter de atingir serras ainda não devassadas. Ao enaltecer o custeamento por parte de D. Pedro II, Januário Barbosa ainda insistiu nos perigos da empresa ao caracterizá-la como muito arriscada. Ao final, porém, a justificativa foi feita por outros meios, repetindo os argumentos anteriores da petição do IHGB.

Ao mesmo tempo procurando calar as vozes opositoras, que negavam a existência destas civilizações perdidas, essa justificativa atendia ao alargamento das fronteiras econômicas da nação. O conhecimento geográfico propiciava interessantes retornos financeiros sob a forma de minérios valiosos, terras para a agricultura, habitação e a exploração de recursos naturais. E também o melhor controle político das fronteiras entre as províncias, estas com enormes extensões desconhecidas entre as capitais e o interior. As fantásticas ruínas da Bahia ainda foram apontadas como um

(...) perduravel monumento, que marque nas gerações futuras o feliz reinado de nosso Augusto Protector o Senhor D. Pedro II, e que chame as vistas das Academias e dos sabios do mundo a este grande territorio, cuja geographia, ainda mais que sua historia, se acha desgraçadamente confusa, por não dizer ignorada.

Anteriormente, na comentada petição, o visconde de São Leopoldo também havia caracterizado a cidade baiana como um possível monumento histórico desconhecido.

Ao início da formação do novo império, a elite intelectual já demonstrava um interesse objetivo em vincular vestígios monumentais com o reinado de D. Pedro II. E essas tão almejadas ruínas poderiam simbolizar a perenidade da nação brasileira. Ao mesmo tempo, rompendo a nossa vinculação histórica com Portugal, ao demonstrar que outras civilizações européias estiveram em nosso solo muito tempo antes. Mas não podemos limitar o uso simbólico do passado apenas a vestígios arqueológicos e históricos. O próprio espaço físico foi utilizado pela elite imperial para dar credibilidade a uma idéia de nação.

Seguindo seus pensamentos, Barbosa relatou a aprovação de uma comissão que deveria reunir em um único volume todas as informações geográficas disponíveis, formando um grande atlas brasileiro, eternizando a gloria dos trabalhos do império. As características do espaço físico deveriam formar também uma memória, que o historiador José Bittencourt denominou de território largo e profundo, isto é, as simbolizações de espaço e tempo efetuadas pela elite intelectual que, somadas com representações históricas, foram importantes elementos na formação do Estado Imperial20. Com isso, o secretário ao relacionar os objetivos da comissão do atlas como sendo a busca de monumentos, estava mencionando acidentes físicos que poderiam caracterizar a grandeza do império, e assim como as ruínas humanas, poderiam ser transformados em ícones simbólicos da nação. Percebemos que:

(...) todo imaginário social, da mesma forma que possui um forte componente político, possui também um forte componente espacial pelo poder simbólico atribuído aos objetos geográficos, naturais ou construídos, que estão em relação direta com a existência humana. Em outras palavras, todo imaginário social pode revelar-se imaginário geográfico21.

Aqui também verificamos outro conceito, de que a paisagem geográfica é uma construção imaginária, enfim, uma representação cultural de determinada sociedade ou indivíduo. Os planos da elite imperial para a construção de uma nação tropical, necessariamente estavam assentados em determinados símbolos geográficos, sem o qual este imaginário político não teria legitimidade.

Não esgotando estes recursos simbólicos visando à estruturação do poder imperial, a Revista do IHGB mantinha-se aguardando as notícias de seus associados. E a aventura de Benigno de Carvalho estava distante de um fim. Em duas cartas recebidas já no início de 1842, percebemos as dificuldades da expedição. O cônego afirmou que a quantia de 600 réis recebida para os custeios eram insuficientes para realizar o trajeto almejado, obrigando-o a tomar um caminho mais curto. Logo em seguida, em outra carta enviada da mesma província, o nosso conhecido coronel Ignacio Accioli Silva preocupou-se com o sucesso da referida expedição, por acreditar que os recursos eram muito escassos. Quatro meses depois o mesmo coronel enviou outra correspondência noticiando que a expedição ainda não tinha retornado22. Somente em agosto a ansiedade geral seria em parte desfeita, após o recebimento de um novo e detalhado relatório.

Ao contrário do anterior, esse prospecto não era nada animador. O obstinado padre lamentou em todo o documento as privações e dificuldades de concluir a sua missão, além da falta absoluta de recursos financeiros. Aguardando uma possível quantia a ser enviada pelo governador da província, o expedicionário efetuou diversas obras de desmatamento, abertura de estradas e queimadas. Diante de tantas intempéries, o padre adoeceu por diversas vezes de febre e malária, ficando com grande debilidade física. Recebendo uma resposta negativa do governador, o general Andréa, Benigno encontrava-se numa difícil situação. Sem dinheiro e saúde para chegar ao local pretendido, só lhe restava especular ainda mais sobre o instigante assunto antes de retornar para Salvador. Enviou o ordenança do grupo e um negro das redondezas para investigar a região do rio Parassusinho, os quais após 15 dias retornaram sem sucesso23. Não sem antes contatar pessoas no rio Grande, que teriam descoberto um quilombo perdido no Sincorá. Benigno terminou o relatório acreditando que escravos fugidos teriam dominado as antigas ruínas, esperando retornar para verificar a exatidão dessas informações. Para isso necessitava novamente de subsídios do Instituto, que estipulou em 350.000 réis.

Depois de dois anos de buscas infrutíferas, os acadêmicos imperiais começaram a tornar-se mais críticos com relação ao sucesso desse empreendimento. O coronel Ignacio Accioli Silva, ele mesmo anteriormente um caçador de cidades perdidas, enviou uma carta em 1843 com certa ironia. De um início totalmente entusiástico, a descoberta dos gloriosos monumentos baianos começou a revelar-se frustrada. A realidade de nosso panorama pré-histórico e etnográfico parecia querer suprimir todas as fantasias construídas na década anterior. Mas o mito ainda conseguiu sobreviver por algum tempo.

A MIRAGEM CUSTA A DESAPARECER.

Um ano depois, a persistência do incansável Benigno de Carvalho mais uma vez iria prosseguir na academia. Uma nova correspondência (1844) atualizou suas pesquisas no desconhecido interior baiano. Desistindo da procura pela margem direita do Paraguaçu, agora concentrou seus esforços na região do rio Orobó. Acreditava que a cidade estaria a poucos dias de jornada. Organizando nova expedição com um número maior de pessoas e equipamentos, partiu em direção do local mencionado. Mas em vez de efetuar somente explorações, iniciou a construção de uma ponte e de uma estrada, ligando as margens do rio Tingá com a vila de Santo Amaro24. Qual foi a motivação real desses gastos com tempo e dinheiro, atrasando o objetivo principal do empreendimento? Benigno devia querer aproveitar todo o investimento em soluções concretas para o desenvolvimento da região. Lembremos da anterior petição realizada pelo IHGB ao imperador e dos relatórios do secretário perpétuo, todos aludindo aos interesses econômicos da expedição. Sendo criticado nessa altura dos acontecimentos por alguns opositores, a utilização empírica do dinheiro contribuiria para os objetivos desejados. Outra possibilidade, pequena mas não improvável, é que o padre sofria de diversas doenças na ocasião (reumatismo no braço, malária, inflamação do fígado), que o impossibilitaram de maiores aventuras por regiões selvagens.

No desfecho de sua correspondência, Benigno apresentou provas para a existência da famigerada cidade, entre as quais um testemunho pessoal provindo de um escravo chamado Francisco, que afirmou ter estado nas ditas ruínas! Não descartamos a antiga existência do folclore popular a respeito de cidades encantadas, nem a tradição de quilombos desconhecidos aos quais aludimos anteriormente. Porém, deve-se também ressaltar que os objetivos da missão de Benigno, já há alguns anos internado pelo sertão, deviam ser conhecidos pela maioria dos habitantes dessas regiões. O contato do explorador erudito com as comunidades, nesse caso, deve ter sofrido intenções veladas. O escravo Francisco afirmou que esteve no quilombo quando jovem, vindo a ser cativo na idade adulta. Mas desejoso da alforria, Francisco reforçou o relato com vistas a agradar o entusiasmado pesquisador do Instituto. Se é certo que esses quilombos existiam ainda no período que o padre explorou a região, seus vínculos com a cidade perdida foram puramente imaginários.

O instigante tema da cidade perdida voltou à ordem do dia no IHGB, com a publicação de outra carta de Benigno Cunha, em abril de 1845. Escrita quatro meses antes para o presidente da Bahia, o tenente Andréa, ao mesmo tempo foi um relatório geral de todas as suas expedições, assim como uma espécie de última e desesperada tentativa de credibilidade para o assunto. Afinal, já haviam se passado três anos de explorações sem nenhum resultado concreto. O próprio padre, pela primeira vez apresentou alguns sinais de descrença, porém um novo contato com narrativas de idosos das localidades próximas reanimou suas posteriores convicções ¾ como a existência de veados brancos (que foram citados no documento bandeirante). Ainda baseado nas descrições do negro Francisco de Orobós (aquele que pedia a alforria), aumentou para três o número de quilombos existentes ao redor da cidade perdida. Já sabemos que o presidente Andréa não partilhava de grandes otimismos quanto a essa expedição. E o pedido de mais soldados, cavalos e dinheiro para Benigno, nunca foi atendido. Nem mesmo sua estupenda afirmação final surtiu efeito: "Eu me animo a affirmar a V.Ex., que a cidade está descoberta"25. É evidente que essa declaração tinha propósitos imediatos para conseguir maiores recursos, mas para o contexto posterior do Instituto, surtiu efeitos avassaladores. Um deles, foi iniciar as contestações acerca da veracidade desse local. O fim da miragem estava próximo.

Benigno Cunha não se comunicou mais com a capital a partir de 1845. Somente no ano seguinte enviou outra carta para o general Andréa, em Salvador, publicada no periódico O Crepusculo, do Instituto Literário de Salvador. A redação da revista inicialmente comentou as pesquisas do padre com extrema ironia. Foram contrários à existência da localidade, principalmente pelo fato de não existirem outros restos de civilização pré-histórica no Estado. Para estes intelectuais, seria um melhor investimento da expedição o levantamento topográfico da Bahia.

E de certa forma foi o que propôs este último relatório, enviado para o também descrente presidente da província. Benigno não citou uma única vez em toda a narrativa o tema da localidade abandonada. Seus estudos foram baseados em um mapa enviado pelo general Andréa, do qual não forneceu maiores detalhes. Basicamente, o padre questionou as bases empíricas de todo o levantamento cartográfico existente a respeito do interior da Bahia, nos mapas de Eschwege, Spix e Von Martius. O relato possui um momento curioso comparado com outras cartas do padre. Dedicou muitas linhas para descrever com grande entusiasmo uma caverna situada no rio Prata, onde percebemos um surgimento de imagens delirantes, típicas de exploradores em situações de extrema dificuldade ou frustração.

Em meados de 1846 o general Andréa, com aprovação da assembléia provincial da Bahia, retirou as ordenanças e o auxílio financeiro ao expedicionário. Benigno permaneceu em campo, provavelmente na região do Sincorá até 1848. Surgiram boatos de que teria ficado louco, escutando sinos e outros sons. Escreveu para o bispo Romualdo Seixas, solicitando faculdades espirituais para beneficiar os habitantes da nova cidade a ser descoberta, onde em breve entraria. Outros rumores desse período diziam que Benigno teria realmente encontrado as almejadas ruínas, e que minérios preciosos estariam sendo explorados por seus superiores hierárquicos26. O que sabemos de concreto é que retornou frustrado para Salvador, vindo a falecer nesta cidade em 1849.

Neste momento refletimos sobre as razões de tanto empenho por parte de Benigno. Seriam apenas fantasias individuais? A fé cega em um mito não pode ser entendida apenas nessa perspectiva, pois como afirmou Girardet, "o mito só pode ser compreendido quando é intimamente vivido, mas vivê-lo impede dar-se conta dele objetivamente"27. Dessa maneira, acreditamos que a análise mítica pode partir de um referencial social de longa duração, mas explicando as atitudes individuais em um contexto histórico. Tanto o comportamento quanto as imagens do desafortunado religioso foram semelhantes às de aventureiros e religiosos que também buscaram outras cidades imaginárias durante a história americana. O maravilhoso ¾ as imagens que expressam o desconhecido geográfico através do fantástico ¾ são as estruturadoras básicas dessas aventuras. Os conquistadores coloniais, bandeirantes e arqueólogos modernos, desta maneira, foram impelidos por razões diferenciadas (políticas, econômicas ou culturais), mas seguindo as mesmas diretrizes: a busca por cidades imaginárias, situadas em regiões desconhecidas do incógnito brasileiro. O entusiasmo inicial em ambos os tipos de buscadores não era apoiado em evidências diretas, mas geralmente pelo mecanismo da paralipse. Uma estratégia narrativa que consiste em transferir a autenticidade do relato ou da existência de uma localidade imaginária para outros personagens. O famoso Walter Raleigh, ao tratar do Eldorado, legitimou sua existência com informações de indígenas locais, do mesmo modo que Benigno ao utilizar-se do folclore baiano.

O maravilhoso também foi um reflexo do poder. Os aventureiros coloniais expressaram em seus atos aos indígenas, a imagem do poder imperial europeu. E os representantes do IHGB ampliaram as fronteiras do conhecimento geográfico, ao mesmo tempo em que realizaram atividades de interesse da elite imperial. Se para os conquistadores, as cidades imaginárias estruturavam-se em imagens de abundantes riquezas, atendendo aos interesses mercantilistas do colonialismo, para os arqueólogos do império brasileiro as nossas ruínas irreais atendiam ao ideal da construção de uma nova ordem social e política ¾ a nação dos trópicos.

E a cidade perdida? Quase findando a década, surgiu uma última e desesperada tentativa de elucidar o mistério. Estamos no ano de 1848. O major Manoel Rodrigues de Oliveira enviou da Bahia para a capital um estudo contestando a localização proposta por Benigno ¾ região do Sincorá ¾ e propondo uma nova interpretação do documento, baseada principalmente em indícios encontrados no interior da província. Oliveira chamou a atenção dos intelectuais cariocas para duas regiões em especial, a primeira situada entre a vila de Belmonte (entre os rios Paraguaçu e Una, centro-sul da Bahia), e a outra em Provisão (sudoeste baiano, próximo à cidade de Camamu). Na primeira foram localizados vestígios de móveis antigos, louças, balaústres, ferramentas, vidros, e na segunda, foices, machados e espadas de ferro. Tratava-se, obviamente, de objetos pertencentes a grupos exploradores, mineradores ou antigas guarnições coloniais. Inclusive, no relato original da cidade perdida, não ocorre nenhuma referência a móveis, alfaias ou objetos cotidianos como vidros e louças, pois os bandeirantes encontraram as casas somente em ruínas. Peças de ferro e ferramentas também não faziam parte da Relação. O único e exclusivo ponto em comum com esses objetos coloniais, foi a menção de uma moeda de ouro ao final do manuscrito.

Ao mesmo tempo em que criticou as pesquisas do cônego, Oliveira concebeu hipóteses fantasiosas muito mais ousadas do que seu predecessor. Fez um breve esboço do alcance urbano dessa perdida civilização no centro da Bahia. Teriam construído um ancoradouro às margens do rio Paraguaçu, uma estrada de acesso próximo ao rio Una, e as pedreiras de mármore da serra teriam sido utilizadas para fabricação de estátuas e monumentos. Mas para as vistas da intelectualidade carioca, os pontos levantados pelo major tiveram uma aceitação reservada. Constituíam sem qualquer margem de dúvida provas concretas de que o sertão possuía um passado desconhecido, mas que a exploração empírica falhava em atingir. O documento enviado também recordou o caráter utilitário para a formação de novas expedições de busca: a descoberta de riquezas para o império28.

Mas com a morte do desafortunado cônego Benigno em 1849, morreram também as expectativas do império brasileiro em encontrar o seu "espelho" civilizacional na pré-história. Esse eclipse da cidade perdida no período se deve também em parte aos protestos de intelectuais baianos. O presidente e a assembléia provincial nunca foram favoráveis aos intentos de Benigno. Seu fracasso apenas reforçou essas convicções. Mesmo o estudo do major Manoel Oliveira foi severamente contestado. Outro militar, o brigadeiro José da Costa Bittencourt Camara, publicou em 1849 na revista Razão (Canavieiras, BA), uma crítica às conclusões de Oliveira. O brigadeiro acreditava que o documento bandeirante era apócrifo. Algum explorador esperto teria descoberto diamantes no Sincorá ficando muito rico, mas por remorsos teria fabricado o dito roteiro, baseado nas formas geológicas do local. Também algumas importantes agremiações de Salvador opunham-se à existência dessas ruínas, como a Sociedade Instructiva e o Instituto Literário. Um sócio do IHGB, Theophilo Benedicto Ottoni, concordava em opinião com o brigadeiro José Camara. Tendo também explorado o Sincorá, acreditava que o roteiro bandeirante era uma alegoria das minas de diamante da região, elaborado para disfarçar a sua exata localização. Estabelecia ainda que alguns detalhes do relato realmente eram verdadeiros, porém obras da natureza.

Ao final da década de 40, temos também como opositor ninguém menos que o bispo metropolitano da Bahia, o marquês de Santa Cruz. Acusou o desiludido cônego de ter-se afastado de suas ocupações eclesiásticas básicas, perseguindo uma quimera e efetuando uma "empresa verdadeiramente cômica." Mas sabemos que o próprio bispo foi um dos grandes instigadores da busca dessa controvertida localidade. Assim, dos pontos de vista político, econômico e mesmo cultural, a existência das ruínas baianas passou para segundo plano, sendo o ano de 1849 um divisor das pesquisas arqueológicas no império. Marcou o fim de um período de muito entusiasmo, em que o mito foi um grande atrativo para os pesquisadores.

CONCLUSÃO: AS METAMORFOSES DO MITO.

As ruínas buscadas por décadas no império brasileiro possuem uma especificidade histórica bem definida, constituindo um conjunto de imagens relacionadas com o advento da arqueologia moderna. Imagens estas determinadas por parâmetros mediterrânicos, a exemplo das cidades romanas como Pompéia e Herculano. Sabemos hoje que essas ruínas brasileiras nunca existiram, e o que os estudiosos perseguiram foi uma miragem, um mito arqueológico. A cidade perdida da Bahia, concebida através do manuscrito 512, esteve impregnada de elementos culturais setecentistas, como detalhes arquitetônicos, pórticos, pirâmides, estátuas, praças, e principalmente, vestígios epigráficos. Sua interpretação pelos acadêmicos oitocentistas deve ser entendida por meio de teorias arqueológicas vinculadas com esse momento, a exemplo do difusionismo e das recentes descobertas de ruínas maias na América Central.

Mas este contexto histórico não explica a credibilidade e longevidade do mito, apenas sua especificidade temporal. O manuscrito bandeirante despertou inicialmente o interesse acadêmico (1839), mas a sua legitimação ¾ o primeiro passo efetuado para diferenciar a Relação de uma simples fábula, oposta à razão, o confronto entre mythos e logos ¾ ocorreu somente quando houve contato com o folclore baiano a respeito das cidades encantadas. Em 1840, intelectuais enviaram de Salvador para a capital notícias desses relatos, e a partir de 1841, o explorador Benigno de Carvalho, já em campo, recolheu inúmeras outras descrições orais. Desta maneira, a palavra concedeu uma legitimidade ao mito, muito maior que a escrita: "a verdadeira vida do mito tem sua fonte em uma palavra viva"29. A literatura e a escrita formam o grande valor demonstrativo do logos, contraposto à palavra do mythos. Com a afirmação de moradores da Bahia terem visto ou visitado tais ruínas, criaram-se condições muito mais profundas de sedução para a imagem da cidade perdida: "a narração oral desencadeia no público um processo de comunhão afetiva com as ações dramáticas que formam a matéria da narrativa"30. Desta maneira, um manuscrito velho, rasgado, quem sabe apócrifo, sozinho não explica porque houve tanto empenho por parte da academia, esta financiando expedições custosas e perpetuando o mito arqueológico por toda a década. A cultura erudita acabou fundindo estruturas narrativas próprias com as mantidas pela cultura popular ¾ cuja origem, por sua vez, provém de bases míticas muito mais antigas, herdeiras diretas de imagens coloniais.

Após esse momento inicial de legitimação, o mito passou a ter um valor de paradigma, constituindo um modelo de referência para se pensar no passado brasileiro. A partir de 1840, a aceitação da antiga existência da geração perdida ¾ uma civilização muito avançada, mas desaparecida sem deixar quase nenhum vestígio ¾ nos demonstra a inclusão do mito na História. Uma narrativa fabulosa, irreal, foi interpretada dentro de um discurso "verdadeiro", autenticando uma forma ideal de como deveria ter sido o Brasil dos tempos antigos, sem nenhuma evidência concreta para confirmá-la:

Dentro do que o saber histórico chama de 'mitoso', o ilusório se nutre da memória antiga, e o fictício se apropria das narrativas dos logógrafos, das investigações dos arqueólogos e das litanias dos genealogistas.

A partir desse pressuposto, toda uma escala de valores sociais foi reforçada, a exemplo do caldeamento racial proposto por Von Martius em 1845. O sentido de civilização que se pretendia criar nos trópicos durante o império foi baseado em um modelo situado na aurora dos tempos, uma sociedade sofisticada, mas que decaiu e cujos resquícios deveriam ser resgatados a todo custo. Um monumento que refletiria o Brasil para o mundo, para as grandes nações do Ocidente, completando todas as ansiedades e ausências simbólicas que o segundo império enfrentava no seu início: "Em sua forma autêntiva, o mito trazia respostas sem jamais formular explicitamente os problemas."

A partir desse momento paradigmático, em que a cidade perdida serviu de referencial ético, social e civilizatório para o império, o mito assumiu conotações muito semelhantes a estruturas míticas universais. Sua busca, neste contexto, foi similar à de outros mitos, em locais e épocas diferentes:

(...) no seio de uma cultura os mitos, quando nos parecem se contradizer, correspondem-se tão bem uns aos outros que fazem referência, em suas próprias variáveis, a uma linguagem comum, que estão todos inscritos no mesmo horizonte intelectual e que só podem ser decifrados no quadro geral onde cada versão particular assume seu valor e seu relevo em relação a todas as outras.

De uma perspectiva histórica e única, podemos então observar semelhanças atemporais com as cidades imaginárias do período colonial, e mesmo com modelos clássicos. Tanto a Atlântida, o Eldorado, o lago Eupana e Parimé, como a cidade perdida da Bahia, foram buscados por propósitos diferentes, sejam motivos de ordem econômica, colonialista, científica, cada um dentro do contexto social de sua época. À medida que essas narrativas prolongam sua existência, modelos míticos básicos surgem em sua elaboração. Assim, aparecem constantes atemporais, como as motivações paradisíacas e o retorno da Idade do Ouro: imagens de uma antiga ordem, de um tempo idílico situado no início da humanidade, que revela a inocência total e a felicidade social absoluta. Outra constante foi o deslocamento geográfico ¾ toda cidade imaginária foi buscada em diversos locais, movendo-se conforme o devassamento do ignoto e o processo de colonização. Sempre baseadas no mecanismo do maravilhoso, essas narrativas acabaram encontrando suas limitações justamente na esfera territorial. Quando o espaço desconhecido tornou-se esgotado em todos os seus aspectos, o mito arqueológico foi eliminado de seus símbolos básicos, sendo contestado racionalmente. Aqui ocorreu um retorno ao confronto entre mythos e logos: o que era entendido antes como realidade, agora é transportado novamente ao terreno da fantasia, do quimérico, do irreal. As ruínas da Bahia, ao final do império, foram eliminadas do campo acadêmico, relegadas a uma condição de miragem provocada por antigos pesquisadores. Porém, toda elaboração simbólica nunca morre definitivamente, sendo transformada em uma nova narrativa, ocasionando sua sobrevivência para o novo século: "os mitos se respondem mutuamente e o aparecimento de uma versão ou de um mito novo se faz sempre em função daqueles que já existiam anteriormente". Assim, se para a ciência oficial a cidade perdida tornou-se uma aberração fantástica, por sua vez, estrangeiros e amadores brasileiros promoveram dezenas de expedições em sua busca, no início do século XX até nossos dias.

O historiador pode unicamente entender o lugar do mito na História, e nunca o seu significado mais profundo, pois ao racionalizar formas emotivo/imaginárias, penetra no campo da experiência, na ordem do existencial. Seja na forma de cidades feitas de ouro, ou de magníficos resquícios arquitetônicos, o mito assumiu várias páginas fascinantes da história brasileira, e que não podendo ser compreendido em sua totalidade, ao menos pudemos vislumbrar sua importância para o imaginário dos tempos imperiais.

Johnni Langer  Doutor História/UFPR.

Ano: 2002.

Fontes.

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882002000100008

NOTAS

1ANÔNIMO. Relação historica de uma occulta, e grande povoação antiquissima sem moradores, que se descobriu no anno de 1753. Bahia/Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, documento n. 512, 1754.         [ Links ] O documento manuscrito original não contém paginação, motivo por que não relacionamos as páginas das citações.

2 HOLLANDA, Sérgio Buarque. A visão do Paraíso. São Paulo: Nacional, 1958, p. 66.         [ Links ] Sobre mitos geográficos no Brasil colonial ver: LANGER, Johnni. O mito do Eldorado. Revista de História, São Paulo, n. 136, pp. 25-40, 1997.         [ Links ]

3 Apud: COSTA, Cândido. As duas Américas. Lisboa: João Bastos, 1900, p. 55.         [ Links ]

4 KRUSE, Herman. O manuscripto 512 e a viagem à procura da povoação abandonada. São Paulo, janeiro de 1940. Rio de Janeiro, Departamento do Patrimônio Histórico, Arquivo Nacional, p. 20;         [ Links ] CALMON, Miguel. O segredo das minas de prata. Rio de Janeiro: A noite, 1950, p. 164;         [ Links ] LANGER, Johnni. As cidades imaginárias do Brasil. Curitiba: Secretaria de Cultura do Paraná, 1997, p. 69;         [ Links ] LANGER, Johnni. "Enigmas arqueológicos e civilizações perdidas no Brasil oitocentista". In Anos 90, Porto Alegre, nº 9, pp. 165-185, 1998.         [ Links ] No início do século XIX, Antonio Mariano Homem d'Elrei referiu-se ao encontro por parte de um empregado, de veados brancos e uma tapera sem gente (ruínas) localizada em uma serra no rio das Contas (possivelmente a serra do Sincorá). Conf. ROCHA, Lindolfo. Zona desconhecida no interior da Bahia. Revista do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia, Salvador, vol. 34, p. 143, 1908. O encontro dos animais e das ruínas na serra mencionada, relacionam-se com os descritos pela Relação dos bandeirantes, quando do encontro da cidade perdida.

5 Neste período, não existia ainda qualquer pesquisa arqueológica ou antropológica realizada por brasileiros fora do contexto do IHGB. Ao contrário, na América Central ocorriam diversas publicações popularizando os empolgantes encontros de cidades perdidas pré-colombianas. Sobre a influência destas descobertas no imaginário da intelectualidade brasileira do segundo império, ver outros estudos de nossa autoria: LANGER, Johnni. Mitos arqueológicos e poder. Clio ¾ Série Arqueológica. Recife, v. 1, nº 12, pp. 109-125, 1997; LANGER, Johnni. "Enigmas arqueológicos e civilizações perdidas no Brasil oitocentista". In Anos 90, Porto Alegre, nº 9, pp. 165-185, 1998; LANGER, Johnni. "Os enigmas de um continente: as origens da arqueologia americana, 1750-1850". In Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. XXVII, nº 1, pp. 143-158, 2001; LANGER, Johnni. Ruínas e mito: a arqueologia no Brasil império. Tese de doutorado em História. Curitiba: UFPR, 2000, pp. 103, 129-131, 140-141.

6 35ª Sessão. Revista do IHGB, tomo II, primeiro semestre, n. 5, p. 152, 21 de março de 1840.

7 GAFFAREL, Paul. "Les phéniciens en Amérique". In Congrés International des Americanistes, Paris, 1875, p. 127.         [ Links ] Não conseguimos encontrar maiores referências sobre essa pretendida expedição dinamarquesa. Outras obras também confirmam esse ocorrido, porém sem citar detalhes de fontes: COSTA, op. cit., p. 46; ESTELLITA JR. As minas do Sincorá. Rio de Janeiro: Ed. Bonjean, 1933, p. 159. Em um documento enviado ao IHGB, o arqueólogo dinamarquês Carl Rafn referiu-se a um capitão de navio, de nome Suenson, que teria enviado um pequeno artefato do Peru para Copenhague durante os anos 40. Conf. RAFN, Museu d'antiguidades americanas. Revista do IHGB, tomo VII, nº 25, p. 101, 1845. Trata-se de um dos nomes apontados como integrantes desta expedição. Carl Rafn também esteve envolvido com a questão da cidade perdida da Bahia, como demonstraram as pesquisadoras HOLTEN, Birgitte & GUIMARÃES, Lucia. "Desfazendo as ilusões: o dr. Lund e a suposta presença escandinava na Terra de Santa Cruz". In Locus, Juiz de Fora, vol. 3, nº 1, pp. 32-44, 1997.         [ Links ]

8 44ª Sessão. Revista do IHGB, tomo II, primeiro semestre, n. 5, p. 403, 1 de agosto de 1840.         [ Links ]

9 CUNHA, Benigno José de Carvalho e. "Carta ao Instituto, Bahia, 25 de fevereiro de 1841". In Revista do IHGB, tomo III, nº 9, p. 198, abril de 1841.         [ Links ]

10 Idem, p. 203.

11 Sobre cidades encantadas na América ver: GANDIA, Enrique de. Historia crítica de los mitos de la conquista americana. Buenos Aires: Juan Roldan, 1929. A respeito da relação entre cidades imaginárias, folclore brasileiro e literatura ver: LANGER, Johnni. "Mito, história e literatura: as cidades perdidas do Brasil". In História e Perspectivas, Uberlândia, nº 14, pp. 67-83, 1996. Agradecemos ao historiador e explorador Luiz Galdino (Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo), pelas valiosas informações sobre tradições orais, aspectos geográficos e arqueológicos da Bahia.

12 PONTES, Rodrigo de Souza da Silva. Parecer da comissão de História sobre memória tratando das ruínas da cidade abandonada da Bahia, enviada ao IHGB. Rio de Janeiro, 3 de junho de 1841. IHGB, lata 575, pasta 1. Este documento não contém paginação.         [ Links ]

13 LEOPOLDO, visconde de São. Aviso do paço imperial, tratando de verbas para a expedição de Benigno na Bahia. Rio de Janeiro, 7 de novembro de 1841. IHGB, lata 342, pasta 5. Este documento não contém paginação.         [ Links ]

14 37ª Sessão. Revista do IHGB, tomo II, segundo trimestre, pp. 265-266, 25 de abril de 1840.         [ Links ]

15 AMADO, Janaína. "Região, sertão, nação". In Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, nº 15, p. 149, 1985.         [ Links ]

16 SOUZA, Candice Vidal e. A pátria geográfica: sertão e litoral no pensamento brasileiro. Goiânia: UFG, 1997, p. 161.         [ Links ]

17 LEOPOLDO. Op.cit., sem paginação.

18 LEOPOLDO, visconde de São. "Expediente". In Revista do IHGB, tomo III, nº 12, p. 498, 1841;         [ Links ] LEOPOLDO, visconde de São. "Discurso do presidente". In Revista do IHGB, tomo III, nº 12, suplemento ao terceiro tomo, p. 521, dezembro de 1841.         [ Links ]

19 BARBOSA, Januário da Cunha. "Relatório dos trabalhos do Instituto durante o terceiro anno social". In Revista do IHGB, tomo III, nº 12, p. 522, suplemento ao terceiro tomo, 1841.         [ Links ]

20 BITTENCOURT, José Neves. Território largo e profundo: os acervos dos museus do Rio de Janeiro como representação do estado imperial (1808-1889). Tese de doutorado ¾ UFF, Niterói, 1997, p. XVIII.         [ Links ]

21 CASTRO, Iná Elias de. "Imaginário político e território: natureza, regionalismo e representação". In Explorações Geográficas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p. 177.         [ Links ]

22 80ª Sessão. Revista do IHGB, tomo IV, nº 13, p. 102, 3 de fevereiro de 1842.         [ Links ]

23 CUNHA, Benigno José de Carvalho e. "Carta escripta ao primeiro secretario perpétuo do Instituto, Sincorá, 20 de agosto de 1842". In Revista do IHGB, tomo IV, nº 15, p. 401, outubro de 1842.         [ Links ]

24 CUNHA, Benigno José de Carvalho e. "Correspondências, Carrapato, 1 de junho de 1844". In Revista do IHGB, tomo VI, nº 23, p. 327, 1844.         [ Links ]

25 CUNHA, Benigno José de Carvalho e. "Correspondência. Offício do sr. Cônego Benigno ao exm. presidente da Bahia, o sr. tenente general Andréa, sobre a cidade abandonada que ha três annos procura no sertão d'essa provincia, Carrapato, 23 de janeiro de 1845". In Revista do IHGB, tomo VII, nº 25, p. 104, 1845. Grifo original.         [ Links ]

26 TOURINHO, D.C. "Noticias topographicas do interior da provincia da Bahia". In O Crepúsculo, periódico instructivo e moral do Instituto Litterario da Bahia, Salvador, segundo volume, p. 20, 1846;         [ Links ] CUNHA, Benigno José de Carvalho e. "Carta ao presidente da Bahia, Campestre, 9 de janeiro de 1846". In O Crepúsculo, periódico instructivo e moral do Instituto Litterario da Bahia, Salvador, segundo volume, p. 21, 1846;         [ Links ] FREITAS, Antonio de Paula. A cidade abandonada do interior da Bahia. Revista da Sociedade de Geographia do Rio de janeiro, tomo IV, n. 4, 1888, p. 156;         [ Links ] SEIXAS, Romualdo Antonio de (Marques de Santa Cruz). Memorias do Marquez de Santa Cruz, arcebispo da Bahia. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1861, p. 147;         [ Links ] ESTELLITA JR. Op. cit., p. 158.

27 GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 23.         [ Links ] A respeito da relação entre mitos arqueológicos e contexto histórico ver ainda: LANGER, Johnni. "Mitos arqueológicos e poder". In Clio¾ Série Arqueológica, Recife, v. 1, nº 12, pp. 109-125, 1997; LANGER, Johnni. "A Esfinge atlante do Paraná: o imaginário de um mito arqueológico". In História, questões e debates, Curitiba, ano 13, nº 25, pp. 148-163, 1996;         [ Links ] LANGER, Johnni. "As origens da arqueologia clássica". In Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, MAE. São Paulo, nº 9, pp. 95-110, 1999;         [ Links ] LANGER, Johnni. "Origens da Egiptologia". In Espaço Plural, Cepedal/Unioeste. Marechal Cândido Rondon, ano III, nº 7, p. 27, 2001.         [ Links ]

28 OLIVEIRA, Manoel Rodrigues de. "Novos indícios da existência de uma antiga povoação abandonada no interior da provincia da Bahia, 2 de julho de 1848". In Revista do IHGB, tomo X, segundo trimestre, p. 367, 1848.         [ Links ]

29 DETIENNE, Marcel. A invenção da mitologia. Brasília: Edunb, 1992, p. 222.         [ Links ]

30 VERNANT, Jean-Pierre. Mito e sociedade na Grécia antiga. Brasília: Edunb, 1992, p. 174.         [ Links ] As citações seguintes foram retiradas respectivamente de: DETIENNE. Op. cit., p. 226; VERNANT. Op. cit., p. 181; VERNANT. Op. cit., p. 220.

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