"Este é o documento secreto mais perturbador que já li em vinte anos de pesquisa", descreveu o pesquisador Matias Spektor, coordenador do Centro de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas. Spektor chamou atenção em 10 de Maio de 2018 para relatos disponibilizados pelo Governo norte-americano. O relatório começa descrevendo encontro de 30 de março de 1974 entre o então presidente Ernesto Geisel, o general Milton Tavares de Souza e o general Confúcio Danton de Paula Avelino, "respectivamente o ex-chefe e o novo chefe do Centro de Inteligência do Exército (CIE)", na descrição do próprio relatório. "Também estava presente o general João Baptista Figueiredo, chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI)" e futuro presidente do país.
Presidente Americano Gerald Ford e seu secretário de Estado, Henry Kissinger, no Ano de 1974. Créditos: Thomas J. O'Halloran/Library Of Congress. |
Ainda segundo o relatório, que pode ser acessado pelo site do Departamento de Estado, "o presidente [Geisel], que comentou a seriedade e aspectos potencialmente prejudiciais dessa política, disse que queria refletir sobre o assunto durante o fim de semana, antes de tomar qualquer decisão sobre a sua continuidade". No dia 1º de Abril, Geisel "informou ao general Figueiredo que a política deveria continuar, mas que extremo cuidado deveria ser tomado para assegurar que apenas subversivos perigosos fossem executados".
"O presidente e o general Figueiredo concordaram que, quando o CIE detivesse uma pessoa que poderia ser enquadrado nessa categoria, o chefe do CIE deveria consultar o general Figueiredo, cuja aprovação deveria ser dada antes que a pessoa fosse executada", segue o relatório, cuja última mensagem disponível diz que "o presidente e o general Figueiredo também concordaram que o CIE deve dedicar-se quase exclusivamente a combater a subversão interna, e que a atuação do CIE, em geral, deve ser coordenada pela general Figueiredo". Apesar de o sigilo do documento ter caído, dois parágrafos que somam no total 19 linhas foram mantidos em segredo.
Para Spektor, que topou com o registro enquanto pesquisava outros assuntos, o memorando é "prova do envolvimento do regime militar na política de execuções sumárias de inimigos do regime". Ela se soma a evidências já existentes, como a gravação revelada pelo jornalista Elio Gaspari em que Geisel dá luz verde para a repressão à guerrilha no Araguaia e o depoimento em que um general francês descreveu a uma historiadora a ocasião em que Figueiredo o levou para acompanhar uma sessão de tortura. Segundo o pesquisador, "o relato mostra a importância de as autoridades brasileiras também abrirem os seus arquivos".
As feridas abertas durante a ditadura militar brasileira (1964-1985) insistem em não cicatrizar. O documento da CIA que expõe a cúpula do Governo militar discutindo execuções em 1974 "implode o núcleo da versão oficial", segundo Vivien Ishaq, gerente-executiva do relatório da Comissão da Verdade. Responsável por coordenar os esforços das mais de 300 pessoas que participaram ao longo de 30 meses da pesquisa que revirou o passado recente do país, a historiadora chama atenção para o nível em que a mensagem da CIA foi trocada. "Do ponto de vista do poder dos personagens, é Top Secret. De diretor da CIA para primeiríssimo escalão. É extremamente importante", diz Ishaq. O conteúdo da mensagem é posto em dúvida pelos militares, contudo.
Manifestação no Rio de Janeiro em 1968 contra a ditadura militar. Créditos: ARQUIVO NACIONAL/CORREIO DA MANHÃ. |
Como esse documento estava à disposição para consulta desde 2015, é de se imaginar que ainda há mais para ser descoberto sobre o período. Pelo menos a partir dos arquivos norte-americanos, porque o Exército divulgou uma nota desencorajadora na quinta-feira. Reproduzida pela Agência Brasil, a mensagem do Centro de Comunicação Social do Exército "informa que os documentos sigilosos, relativos ao período em questão e que eventualmente pudessem comprovar a veracidade dos fatos narrados foram destruídos, de acordo com as normas existentes à época – Regulamento da Salvaguarda de Assuntos Sigilosos (RSAS) – em suas diferentes edições”.
O Ministério da Defesa reforçou a mensagem do Exército em nota praticamente idêntica. Mais tarde, questionado por jornalistas sobre o assunto, o ministro Raul Jungmann, da Segurança Pública, disse que o valor das Forças Armadas "permanece nos mesmos níveis [em] que se encontra até aqui". "São documentos da CIA, e o Governo brasileiro não tem conhecimento oficial de nada do que diz respeito a isso. Para se ter um pronunciamento oficial a respeito desse assunto, nós não podemos ficar apenas [nisso]", comentou.
O Arquivo Nacional guarda pelo menos dois lotes de documentos enviados pelos Estados Unidos após a conclusão do relatório da Comissão da Verdade. São 651 os documentos disponíveis para os pesquisadores brasileiros. "A produção documental sobre o assunto é gigantesca. Há 20 milhões de páginas no Arquivo Nacional", diz Vivien Ishaq. Segundo ela, o relatório da Comissão da Verdade produziu apenas uma "fotografia do período em que funcionou" e ainda "tem muita investigação a ser feita e muito documento a ser analisado". E é possível até que existam documentos brasileiros, porque o termo de destruição dos registros também foi destruído. Ou seja, não existe prova de que os documentos foram de fato destruídos.
Militares.
Além do Exército, do Ministério da Defesa e do ministro da Segurança Pública, também falou pelos militares o Atual Presidente Jair Bolsonaro (PSL-RJ). Em entrevista à rádio mineira Rádio Super na época (Maio de 2018), o pré-candidato à presidência questionou onde estão os 104 mortos que teriam sido executados pelo regime em 1973, de acordo com o documento da agência de inteligência norte-americana. "Quantas vezes você falou ali num canto que tem que matar mesmo, tem que bater, tem que dar canelada...Talvez esse cara tenha ouvido uma conversa como essa e fez o relatório e mandou", questionou o deputado, referindo-se ao então diretor da CIA, William Egan Colby.
Único dos pré-candidatos à presidência a defender o regime militar, Bolsonaro interpretou a comoção em torno da questão como uma reação a seu prestígio eleitoral. "Voltaram à carga, né? Um capitão está para chegar lá, é o momento. Olha, foi um memorando de um agente, que a imprensa não divulgou. É um historiador que diz que viu, mas não mostrou. Tem que matar a cobra e mostrar o pau. Eu respondo de forma simples: quem nunca deu um tapa no bumbum de um filho e depois se arrependeu?", disse o deputado durante a entrevista.
O presidente do Clube Militar, Gilberto Pimentel, engrossou o coro. Em entrevista ao Estado de S.Paulo, ele classificou a comunicação norte-americana de "inteiramente fantasiosa" e disse que o documento "não vale um tostão furado". Na entrevista, Pimentel destaca o momento em que a mensagem surgiu. "Temos agora na liderança das pesquisas para as eleições presidenciais um candidato que surgiu do nosso meio e um grupo expressivo de militares que, democraticamente, nesses dias consolidou a intenção de candidatar-se aos mais variados cargos de governo, desde os municipais, passando pelos estaduais até os federais”. Levantamento do Estado de S.Paulo aponta a que pelo menos 71 militares pretendem se candidatar na eleição deste ano.
O presidente eleito do Clube Militar, Antonio Hamilton Mourão, que assume o posto em junho, também comentou o assunto em entrevista. Ao jornal gaúcho Zero Hora: “A quem interessa manchar a reputação das Forças Armadas, que segundo pesquisas são as instituições em que a população mais confia, hoje, no Brasil? Gostaria de saber por que esse documento surgiu justo agora, num momento turbulento da nação.”
Manifestação no Rio de Janeiro em junho de 1968. Créditos: ARQUIVO NACIONAL/CORREIO DA MANHÃ. |
Órgãos do Ministério Público Federal divulgaram nota nesta sexta-feira para questionar a Lei de Anistia. A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e a Câmara Criminal do MPF dizem que o "Brasil é o único país do continente que, após ditadura ou conflito interno, protege os autores de graves violações aos direitos humanos com uma Lei de Anistia". "O documento do governo americano, ao revelar nova evidência de que a repressão política pela ditadura militar incluiu uma política de extermínio de opositores do regime, convida para uma resposta breve do Estado brasileiro em favor da promoção da justiça", defendem os órgãos, que dirigem sua pressão diretamente ao Supremo Tribunal Federal. "A Suprema Corte brasileira, ao conformar a aplicação da Lei de Anistia e da prescrição penal às normas vinculantes do direito internacional e às decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, ajustará o Brasil ao parâmetro adotado por todos os Estados da América Latina que passaram por ditaduras ou conflitos internos durante os anos setenta e oitenta".
A Importância da Revelação.
- REMETENTE E DESTINATÁRIO: O memorando é assinado por Colby, então chefe da CIA, e enviado a Kissinger, então responsável pelas relações exteriores dos EUA.
- ASSUNTO: Trata-se do relato de uma reunião da cúpula do regime militar brasileiro na qual o então presidente, Ernesto Geisel, é informado e autoriza o seguimento de uma política de Estado de execuções sumárias contra cidadãos brasileiros que se opunham ao regime militar.
- ORIGEM: Não é possível saber como o diálogo se tornou conhecido pela CIA, nem quem captou a informação que foi repassada acima na cadeia de comando.
- CONTEXTO: Os EUA apoiavam a ditadura militar vigente à época no Brasil e tinham interesse no combate a movimentos de esquerda num contexto de Guerra Fria, em toda a América Latina e em outras partes do mundo.
- GRAVIDADE: Execuções sumárias são atos proibidos pela lei internacional em quaisquer circunstâncias, de guerra ou de paz, e em qualquer tempo. É raro no mundo o registro de um presidente autorizando a condução de uma política de Estado como essa, uma vez que esses atos, quando descobertos, são atribuídos a pessoas de baixa patente que agem à revelia do comando político. Como o memorando mostra, não foi esse o caso.
https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/05/11/Memorando-da-CIA-o-que-muda-nas-vis%C3%B5es-sobre-ditadura-Geisel-e-Anistia
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/11/politica/1526053261_197839.html
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/10/politica/1525976675_975787.html
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