quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

E.C.B III: O Crime da Mala (1908).

A única foto que encontrei ligada ao caso.
Muita gente se lembrava ou ouvira falar de Michel Trad, um jovem alto, bem-apessoado, vestido com elegância e versado em francês. Segundo havia declarado, nascera em Beirute, na Síria (Beirute hoje é a capital do Líbano), em 1885, proveniente de uma família de certos recursos; emigrara para o Cairo em 1903 e então para São Paulo, aonde chegou em 1906. Trouxe uma carta de recomendação para um comerciante estabelecido na rua 25 de Março, patrício, que o empregou.

Depois trabalhou em um banco inglês, como guarda-livros, que era como então se designavam os contadores. Em seguida, foi contratado por outra casa comercial, também na 25 de Março, cujo dono era Elias Farhat, de quem ficou amigo. Foi a Beirute visitar o pai e, após voltar a São Paulo, tornou a viajar, dessa vez para Paris, a fim de providenciar mercadorias para o estabelecimento que pretendia abrir com José Farhat, irmão de Elias.


Os imigrantes sírios que aportavam entre nós eram chamados de turcos, uma vez que entravam no país com passaporte do Império Otomano.

Eram vistos como pessoas obstinadas e dispostas a muitos sacrifícios para vencer na vida; embora pouco instruídos, logo aprendiam as frases básicas de um “português comercial”. Em São Paulo, desde as últimas décadas do século XIX, quando a cidade contava com cerca de 240 mil habitantes, os sírios já se concentravam na 25 de Março.

Sem ostentar o torvelinho multiétnico dos dias de hoje, a rua tinha certa importância. Fotografias da época mostram carroças enfileiradas dos dois lados das calçadas, à espera de clientes e suas mercadorias. Muitos sírios que haviam começado a vida como mascates fixaram-se definitivamente “na rua dos turcos”; outros se transferiram para as lojas de atacado da rua Florêncio de Abreu. Mais tarde, alguns se tornaram grandes industriais e foram morar em palacetes no bairro do Ipiranga, próximo a suas fábricas têxteis.

A paisagem da rua 25 de Março era modesta: lojas de tecidos e de armarinho, algumas fábricas, residências sem muitos ornatos, restaurantes de comida árabe. Elias Farhat e seu irmão Abrahão ali se destacavam. Proprietários de uma fábrica de calçados e de uma loja de tecidos, moravam no piso superior do sobrado que abrigava o comércio no térreo. A empresa fora constituída em 1899 sob a denominação de Elias Farhat & Irmão, e tinha um expressivo nome de fantasia: Casa Síria.

A estabilidade das relações entre esses personagens sofreu um abalo quando Michel se encantou pela jovem italiana Carolina Farhat, em solteira Catarina Mori, casada com Elias Farhat. Michel e Carolina tinham a mesma idade, 23 anos, enquanto Elias era onze anos mais velho. Numa fotografia tirada em estúdio, Elias, de terno e colete escuros, um plastron branco no lugar da gravata, ostenta bigodes bem cuidados, com as pontas viradas para cima. A seu lado, Carolina, o rosto cheio, bastos cabelos armados com cuidado, veste um vestido largo, cuja saia chega aos sapatos.

O casamento de Elias e Carolina havia sido encarado com muitas reticências por Maria Mori, mãe de Carolina, e não teve a aprovação dos irmãos de Elias, assim como de outros membros da colônia síria. Casamentos exógenos eram condenados não só pelos sírios, mas por outros grupos minoritários de imigrantes, que buscavam manter a identidade e garantir um mercado matrimonial cativo para as jovens da colônia. Para piorar, nas conversas entre os sírios surgiram suspeitas acerca da fidelidade de Carolina. Dizia-se que Elias, obcecado pelos rumores, maltratava a mulher. O suposto adultério nunca foi confirmado, mas cartas trocadas por Carolina e Michel revelavam intimidade entre os dois.

Nas cartas, Carolina reclamava do que vinha sofrendo. Sentiu-se confortada ao perceber suas mágoas acolhidas por Michel – enfim encontrara um amigo disposto a ouvir suas queixas. Segundo ela, Elias tinha sido um bom marido até a chegada de sua família de intrigantes. A jovem senhora via apenas duas saídas para as agruras de que padecia: ou o marido se afastava de sua nefasta família, ou Deus lhe enviava um filho que viria a ser a razão de sua vida.

Para quem lê essas cartas hoje, parece claro que Carolina e Michel se encaminhavam para uma relação além da fraterna. Solteiro e livre de compromissos familiares, o rapaz tinha poucos motivos para reprimir sua paixão. O único obstáculo era o marido. Michel chegou à conclusão de que Elias deveria sumir do mapa.

Ao planejar o crime, começou pelo fim, convencido de que o corpo da vítima teria de desaparecer. Comprou uma mala numa loja da ladeira Porto Geral e, em seguida, foi à rua de São João – na época, uma rua modesta de casas baixas –, em busca de um funileiro para forrar a mala com folhas de zinco. Entrou na oficina do italiano Francesco Ascoli, regateou o preço e fechou o serviço.

Ascoli não sabia que a encomenda o levaria a viver seu segundo momento de fama no cenário noir, agora como testemunha de um crime sensacional. Ele já havia sido protagonista de um delito culposo, ao tentar se livrar de ratões e ratazanas que infestavam sua oficina. Na luta contra os roedores, Ascoli se munira de vassouras e armadilhas, mas sempre fracassava porque os predadores mortos eram substituídos por outros, em número cada vez maior. Certo dia, desesperado, ele apelou para um recurso extremo. Pegou uma espingarda e começou a atirar para o chão. Os fundos da oficina, porém, eram contíguos a uma casa de espetáculos muito concorrida – o Teatro Politeama –, instalada num barracão. Em meio à fuzilaria, um tiro perfurou o precário tabique de madeira que separava as duas construções e feriu um espectador. Ascoli não só continuou com seus roedores como teve de se haver com um processo.

Em princípios de 1908, depois de anos de bons negócios, a empresa Elias Farhat & Irmão enfrentava dificuldades e estava à beira da falência. Em 2 de setembro de 1908 – uma quarta-feira –, Michel convidou Elias para conversar sobre os problemas da empresa em um lugar calmo: o sobrado da rua Boa Vista, nº 39, onde ele tinha escritório e um quarto para morar. Quando Elias chegou, Trad ofereceu-lhe uma cadeira e, sem interromper a conversa, afastou-se para pegar uma corda, escondida debaixo de um móvel. Num gesto rápido, envolveu o pescoço do outro, que estava de costas para ele. Foi apertando o laço cada vez mais, e só parou quando a cabeça da vítima pendeu para o peito e ruídos abafados silenciaram.

Praticado o crime, cercou-se de alguns cuidados. Visitou a família de Elias e, aparentemente muito preocupado, foi à polícia comunicar seu desaparecimento. De volta ao escritório, deu início a um trabalho cirúrgico. Com paciência, seccionou o corpo da vítima utilizando um instrumento cortante, a fim de que os despojos coubessem na mala. Providenciou o transporte do volume até a Estação da Luz e desceu a serra por trem, rumo a Santos.

No cais, Trad inventou um destinatário falso para a bagagem e a embarcou no vapor Cordillère, que seguia para a França, com escala no Rio de Janeiro. Ao ser transportada para o navio, a mala exalava um odor insuportável, que Trad explicou provir dos salames e queijos destinados a um amigo, no outro lado do Atlântico. O imediato do navio deixou-se convencer por aquele moço educado que, além do mais, argumentava em francês. Sem abrir a mala, determinou que ela fosse colocada num ponto isolado do convés. Michel escapara por pouco. Passado o susto, e já a bordo, pois decidira ir até o Rio, resolveu desembaraçar-se daquela carga incômoda.

Nas proximidades da capital federal, algumas fontes diz que durante a noite, Trad  tentava deslocar o baú para a amurada do navio, de onde pretendia atirá-lo ao mar, foi surpreendido por um tripulante e em seguida detido. Imobilizado, Michel saca um revólver e atira para o alto, mas não consegue se livrar dos marinheiros que o agarravam. O capitão mandou Trad abrir a mala mas ele se recusou, alegando que sendo dono, poderia fazer o que quisesse com ela. Diante da recusa do passageiro, um serralheiro é chamado. Em vez de laticínios e embutidos, encontraram o corpo despedaçado de um homem, em estado de decomposição. O corpo estava parcialmente putrefato, o couro cabeludo perdera a rigidez, a língua estava exageradamente inchada (caindo para fora da boca) a cabeça forçada para baixo.

Ao desembarcar, Trad tentou se safar com uma desculpa esfarrapada. Alguns dias antes teria chegado em casa e, para seu espanto, encontrara o volume. Ao lado dele, postavam-se dois italianos cujos nomes não conseguia lembrar. Sob ameaça de morte, os mal-encarados o obrigaram a transportar o volume até Santos e a embarcá-lo num navio que seguisse para a Europa.

Depois de narrar essa história inverossímil, Trad foi remetido para São Paulo, pela Central do Brasil, onde foi instalado no vagão postal. Segundo narrativas da imprensa, o comboio era abordado por grupos de sírios raivosos em cada estação onde parava. Em Palmeiras, alguns homens teriam tentado quebrar a janela do carro para atacar Trad – o assassino que com um ato nefando manchara o nome da colônia.

Uma vez em São Paulo, Trad chegou a insistir na história dos dois italianos, mas acabou por confessar o crime nos mínimos detalhes. Recusou-se, porém, a revelar as razões de seu ato. Nem mesmo uma conversa com o secretário da Justiça, Washington Luís, o fez mudar de atitude. Ele permaneceu calado durante os longos anos de prisão.

Por suas características macabras, por sugerir atritos entre as colônias estrangeiras e, sobretudo, por encerrar, quem sabe, um mistério amoroso, o primeiro crime da mala sacudiu a cidade de São Paulo. Tanto mais quando, a certa altura da investigação, os pormenores escabrosos cederam terreno a um folhetim judiciário, em que figuravam como personagens o marido traído, a esposa infiel, o amante apaixonado. Tudo atravessado por uma interrogação crucial: teria a esposa sido infiel?

Para o delegado que presidiu o inquérito, a dúvida não fazia sentido. Ele justificou o pedido de prisão preventiva sem meias palavras: “D. Carolina Farhat teve com Michel Trad colóquios amorosos e troca de cartas que, entre senhora casada e moço solteiro, nos termos em que são escritas, não deixam dúvidas a respeito das relações entre os dois.” O juiz de primeira instância deferiu o pedido, e em 10 de setembro de 1908 Carolina, acompanhada da mãe, viu-se obrigada a comparecer à Central de Polícia, onde foi detida.

O fato provocou uma onda de consternação e grande parte da imprensa se colocou decididamente ao lado da moça. No dia seguinte à prisão, um habeas corpus foi impetrado em favor de Carolina, perante o Tribunal de Justiça. No dia do julgamento, uma aglomeração se formou diante do fórum da cidade desde as primeiras horas da manhã. Para evitar manifestações, a polícia mandou cercar a Praça da Sé e imediações, e para lá foram enviados cavalarianos e soldados da Força Pública.

Sempre ao lado da mãe, Carolina chegou ao fórum bem cedo, em automóvel de praça, sem ser notada. Mãe e filha entraram no prédio e foram acomodadas na sala dos advogados. À tarde, quando o julgamento ia começar no recinto do júri, o espaço reservado à assistência estava lotado de jornalistas, estudantes, profissionais liberais e três alunas da Faculdade de Direito, que se sobressaíam naquele ambiente masculino.

Após a entrada solene dos desembargadores, todos os olhos fixaram-se numa porta lateral, de onde surgiram duas mulheres, vestidas de luto rigoroso. A primeira era uma senhora idosa, bem nutrida, de fisionomia resignada e simpática – Maria Monti, mãe de Carolina; a outra era a própria Carolina, formosa, mas lívida, desfeita, cambaleante, como que a cair, não fosse o apoio do braço materno, como narrou uma reportagem de O Estado de S. Paulo. Ao descrever esse quadro dramático, o jornal chegou a dizer que o quase desfalecimento era, por si só, uma demonstração da inocência da jovem senhora.

Em primeiro lugar, falou a acusação, insistindo na existência de fortes indícios que justificavam a prisão preventiva. Dentre eles, a visita de Michel a Carolina, quando Elias já fora morto, testemunhada por três senhoras sírias; o comparecimento da viúva à polícia, a pedido de Michel, tão logo ele foi detido, e a rápida conversa que tiveram, sussurrando palavras em francês; e, principalmente, o teor das cartas trocadas entre os supostos amantes.

A seguir, tomou a palavra o dr. Alfredo Pujol, advogado de grande prestígio em São Paulo, que aceitara o encargo a pedido de pessoas influentes da colônia italiana. Além de considerar duvidosos os depoimentos das senhoras sírias, Pujol insistiu na argumentação de que as cartas só poderiam ser consideradas incriminadoras em consequência de uma tradução desastrada. O canhestro tradutor traduzira a expressão inicial mon cher e a expressão final bien à vous, conferindo-lhes uma intimidade que não correspondia ao sentido da língua original. Para provar sua afirmação, o dr. Pujol leu trechos de um manual de savoir-vivre, escrito por uma dama da “alta aristocracia francesa”, que demonstravam ser aquelas expressões indicadoras de cortesia, e não de íntimas relações.

O habeas corpus foi concedido por unanimidade. Nas declarações de voto, os desembargadores censuraram o açodamento do promotor público e do juiz do caso, por terem acolhido sem maior fundamento a solicitação da polícia. Quando logo em seguida a viúva foi libertada, a pequena multidão postada diante do fórum formou um cortejo que percorreu as ruas do Centro, lançando vivas à jovem viúva e hurras à Justiça.

Como explicar a comiseração e o carinho que Carolina despertou na imprensa e na opinião pública? Só é possível conjecturar. Teria ganho consistência, aos olhos do público, a figura de Carolina como uma jovem desamparada, vítima do marido e de seus parentes, despertando sentimentos de proteção? Do ponto de vista social, seria demais pensar que a corrente em favor da viúva refletia, respectivamente, imagens favoráveis e desfavoráveis das comunidades italiana e síria, na cidade de São Paulo?

Seja como for, após Carolina ter saído de cena, o processo tomou o rumo de uma crônica judicial, cujo desfecho era inevitável. Trad desinteressou-se de sua defesa e acabou condenado a 25 anos de prisão.

A grande repercussão do crime na época inspirou a realização do filme A Mala Sinistra, de António Leal.

Reconstituído o crime ocorrido em 1908, "nas imediações da Rua Boa Vista", em São Paulo: "o guarda-livros Michel Traad, depois de assassinar e esquartejar o industrial Elias Farhat, dono da fábrica de calçados Syrie, colocou-o dentro de uma mala, seguiu para Santos e lançou o fardo macabro ao mar." (VPA/BECB, p. 270)

"Esta fita se compõe de vinte e tantos quadros, entre os quais alguns naturais tomados em São Paulo, Santos, a bordo (do navio Cordillère) e no Rio, terminando por uma apoteose colorida." (Gazeta de Notícias, 10 de out.)

Em seus longos anos como prisioneiro, Trad sempre se situou acima da massa carcerária, considerando-se e sendo considerado um preso especial. Obteve a regalia de um pequeno escritório, onde registrou um diário em francês, que O Estado de S. Paulo publicou em fascículos. Escreveu ainda As Evasões Célebres da Cadeia Pública de São Paulo, em que descreve a psicologia dos presos e critica o sistema penitenciário; e ainda um relato da revolução tenentista de 1924, a partir de um ângulo peculiar: A Revolução de Julho Vista da Cadeia. Cumpridos dezesseis anos de pena, Trad foi posto em liberdade. Acabou se envolvendo com tráfico de drogas e, preso, foi expulso do território brasileiro, para onde nunca mais voltou.

Fontes.                                                                                                                                            023 de 186

https://pt.wikipedia.org/wiki/Crime_da_mala_(1908)

https://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-morte-na-mala/

http://sombrioesobrenatural.blogspot.com/2016/07/crime-da-mala-1908-triangulo-amoroso.html

http://www.interfilmes.com/filme_19422_A.Mala.Sinistra.html

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