quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Enciclopédia dos Mitos e Lendas do Brasil: Terra Sem Males.

Na mitologia guarani, a terra sem males (Yvy marã e'ỹ, em tupi yby marã e'yma) faz referência ao mito de uma terra onde não haveria fome, guerras ou doenças. O mito foi um dos principais instrumentos de resistência utilizados pelo povo guarani contra o domínio dos espanhóis e portugueses. Os movimentos pela busca da "terra sem males" era articulado pelos pajés, que se intitulavam Karaí.

Diz a Lenda, que em 1549, sofrendo com a colonização portuguesa, 15.000 índios partiram do litoral rumo aos Andes, buscando a "terra sem males". Apenas trezentos chegaram a Chachalpoyas, no Peru, onde, ao invés de bonança, foram capturados e presos.
Mito pode ser definido como uma narrativa de significação simbólica,transmitida durante gerações dentro do grupo, e considerada verdade por ele. Pode-se inferir que um mito conta uma história passada num tempo e num espaço primordial e, com base nessa história se conta como uma realidade passou a existir, explicando seu surgimento e o porquê das coisas serem como são.  
Um mito consiste em revelar os paradigmas dos ritos humanos: casamento, a arte, a sabedoria, a criação, a educação, etc. (GAFFO, 1998). 
Um mito, sendo uma história sagrada, segundo o mesmo autor, transforma-se também em uma história autêntica, porque sempre faz alusão à realidade. Nas sociedades ditas ‘primitivas’ não se perdeu o mito como paradigma, como explicação para o surgimento das coisas, pois as mesmas rememoram seus mitos através dos rituais e esse procedimento permite constantes atualizações e adequações, atendendo o processo histórico que estão inseridos (GAFFO, 1998). 
A rememoração do mito traduz que ainda se é capaz de repetir o que os Deuses fizeram outrora. Não se pode realizar um ritual, a menos que se conheça sua origem, o mito que conta como ele surgiu pela primeira vez (GAFFO, 1998). 
A importância dos mitos para os Mbyá está no fato de que eles estabelecem princípios que fundamentam seus pensamentos e suas ações: 
“O acervo mitológico Guarani é extremamente rico e complexo. [...] os Mbyá vêm incorporando, ao seu acervo mitológico, interpretações e acontecimentos vividos e veiculados entre eles, ao longo de sua história. Para os Mbyá o cotidiano está semelhantes em outras culturas de tribos sul-americanas, mas em nenhuma outra tribo essa tradição mítica chegou a ter o lugar que lhe coube entre os Guaranis, em cuja religião veio ocupar a posição central principalmente em virtude da maneira por que se ligou com o mito da destruição do mundo no futuro (SCHADEN, 1962). 
A apropriação do mito pelos índios Guarani Mbyá está ligada à fundação de suas aldeias, baseando-se especialmente na sua relação com a natureza, seja de forma simbólica ou através da prática. Condicionam assim sua sobrevivência. Há lugares que apresentam, através de elementos da flora e da fauna típicos, de formações rochosas e mesmo de ruínas de edificações antigas, indícios que confirmam essa tradição. 
“Formar aldeias nesses lugares ‘eleitos’ significa estar mais perto do mundo celestial, pois, para muitos, é a partir desses locais que o acesso a Yvy marã ey, ‘Terra sem Mal’, é facilitado - objetivo histórico perpetuado pelos Mbyá através de seus mitos. (LADEIRA apud LADEIRA , 2003). 
Isso determinou e determina até os dias de hoje a dinâmica de ocupação territorial dos Guarani que vivem no Brasil e nos países vizinhos. 
“A "busca da Terra sem Mal" é uma constante na vida dos Guarani. Seguem sua trajetória histórica de resistência e luta, acampados entre as cercas das fazendas e as estradas; andando nas proximidades das grandes cidades; percorrendo caminhos entre um acampamento e outro, entre uma terra demarcada e as tantas por eles reivindicadas; confeccionando seus artesanatos e comercializando-os; [...] plantando pequenas roças; [...] criando pequenos animais.” (LIEBGOTT, 2008) 
Para Egon Schaden, a concepção fundamental que deriva a crença no paraíso é o Aguydjê. 
[...] “Aguydjê, que se pode traduzir por bem aventurança, perfeição e vitória é a concepção fundamental que deriva a crença no paraíso. Para o guarani corresponde ao próprio fim e objetivo da existência humana. Nesse sentido costuma ser concebido de maneira concreta como felicidade paradisíaca do mundo sobrenatural, que todos almejam alcançar sem antes morrer e cuja obtenção depende principalmente do cumprimento de umas tantas prescrições religiosas, “morais” ou simplesmente mágicas. Em sua origem, a representação mítica propriamente dita se reduz a uma espécie da Ilha da Felicidade no meio do longínquo oceano, aonde se chega com o auxílio de uma grande corda ou de outra forma, e onde não se conhece a morte. Essa ilha se procura alcançar para uma vida em comunhão espiritual com as divindades e para atingir a imortalidade, mas não para fugir de alguma catástrofe, ao contrario do que se nota após a transformação apocalíptica do mito.” (SCHADEN, 1962, p. 164) 
Os Mbyá são, dentre os indígenas, os que mais importância dão ao mito do paraíso, o Yvy marã ey. Entre eles há um grupo que conserva em suas tradições ensinamentos de origem cristã, e outro, como os estudados por Cadogan e por Schaden no Paraguai oriental (Guairá), em cuja cultura não se precisou nenhuma influência jesuítica. No grupo que não sofreu de aculturação dos Jesuítas subsiste, hoje, mais claramente, a crença original do paraíso na sua forma genuína de aguydjê, ou seja, como perfeição espiritual e física (SCHADEN, 1962). 
Os estudos relativos à combinação do “mito da Terra sem Males” com o “mito da destruição do mundo”, que segundo Schaden (1962), remonta às aulas de religião ministradas pelos jesuítas no período colonial. 
“De um lado temos os referidos Guarani Mbyá de Guaíra em cuja vida mental o papel do cataclismo do futuro é nulo ou quase nulo e para os quais o ideal do paraíso continua sendo essencialmente religioso, identificando um estado místico de bem-aventurança obtido em recompensa de um cultivo especial de vivencia sobrenaturais e de uma conduta virtuosa, estado que se refere menos a condição e a existência física do que ao destino da alma. Por outro lado temos, os que já chegaram ao mar ou que estão a caminho, e que encaram o Paraíso antes de mais nada como lugar de refúgio e segurança com condições de vida ideais. Esse sentido dado ao mito decorre da ativação da crença na destruição do mundo através das experiências religiosas de determinados feiticeiros.” (SCHADEN, 1962, p. 170). 
Existem descrições que representam o paraíso como um lugar onde não se precise trabalhar. Essa interpretação é recente e não é generalizada, existe em decorrência do fruto imediato da desintegração cultural, pois o Guarani em migração tem o paraíso, a Terra Prometida, como o ideal da existência terrena: abundância de caça, fruta e terra para lavoura (SCHADEN, 1962). O mito é considerado um sonho correspondente ao ideal de cultura aceito pela tribo, segundo a qual as atividades exercidas à maneira tradicional continuam fazendo parte integrante da felicidade, não sendo aceito como algo indesejável (SCHADEN, 1962). Dessa ventura faz parte também a possibilidade de se viver em todos os pormenores de acordo com o padrão da tribo. Na “Terra do nunca acabar” todo e qualquer elemento que vem do mundo civilizado é banido. A lealdade aos elementos da cultura tradicional toma sentido religioso. Schaden (1962) observa, que: 
“[...] entre os Mbyá que o motivo propriamente religioso, a união mística com a divindade, tende a passar para o segundo plano, cedendo para cogitações  ligadas às condições de vida inseguras ou pouco satisfatórias que a comunidade se encontre. Isso por seu turno contribui para a desintegração cultural como para a desorganização social, porquanto se passa a negligenciar as atividades econômicas e, sobretudo, a não respeitar devidamente o ritmo ecológico normal do ano pelo simples motivo de estar sempre à véspera da partida.” (SCHADEN, 1962, p. 171). 
Portanto, o paraíso sonhado outra coisa não é senão a continuação da existência terrena, com a diferença apenas de lá não passar pelas provações que caracterizam a vida neste mundo. Aldo Litaiff (2008), conclui em seu artigo intitulado “Mitos e práticas entre os índios Guarani” que o mito Yvy marã ey “é uma expressão adotada a partir do contato, e especialmente da experiência jesuíta, sendo então o resultado da interpretação Guarani, e da fusão de um conceito genuinamente cristão ‘paraíso’ com a estrutura ideológica autóctone já existente.” 
Finalmente, o conceito de Terra sem Mal pode ser visto aqui como tentativa de retorno ao espaço ecológico anterior à conquista européia, assim como o personagem é uma tentativa guarani de re-apropriação de sua história, alienada pelo violento processo ocidental de colonização.” (LITAIFF, 2008, p. 23)
Fontes.                                                                                                                                            019 de 186


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