E há também uma canção dedicada ao personagem, uma canção que todos os gaúchos gostam de cantar.
Isso aconteceu há muito tempo, na época em que ainda existiam escravos. Nessa época vivia no Rio Grande do Sul um estancieiro, um homem muito rico – e muito malvado, tão rico quanto malvado. Todos sabem que os gaúchos costumam ser generosos, hospitaleiros, mas esse estancieiro não oferecia sua casa para ninguém. E também não ajudava os necessitados.
O estancieiro tinha muitos bois, e também muitos cavalos. Entre estes, o seu preferido era um baio, (um animal cujo pêlo era castanho puxando para o amarelado). O baio era um bom corredor, e o estancieiro gostava de desafiar os seus vizinhos para corridas de cavalo. Quem montava o baio era um escravo do estancieiro, um negrinho pequeno e magro. Tão desamparado era o pobre que nem nome tinha, muito menos padrinho ou madrinha; por isso se dizia afilhado de Nossa Senhora. O negrinho sofria muito, inclusive porque o filho do estancieiro, menino malvado, volta e meia batia nele.
Um dia, o estancieiro e um de seus vizinhos, dono de um belo cavalo, fizeram uma aposta alta – mil moedas de ouro – para ver qual dos dois animais era mais rápido. Muita gente veio assistir a essa corrida. Os gaúchos abriam suas guaiacas – uns cinturões muito enfeitados, que servem para guardar objetos – e de lá tiravam dinheiro para apostar. Dada a partida, os dois cavalos saíram em disparada, lado a lado. O pobre negrinho fazia o que podia: se perdesse a corrida, o estancieiro iria castigá-lo sem dó nem piedade.
E foi, infelizmente, o que aconteceu. Quase na chegada, o baio estacou de repente, empinou-se nas patas traseiras. Quando o negrinho conseguiu controlá-lo, já era tarde: o adversário tinha ganho a corrida.
O estancieiro, furioso, atirou no chão o dinheiro que devia. E quando chegou em casa descarregou sua raiva no negrinho: mandou aplicar-lhe uma surra de relho. E deu-lhe um castigo. Como a corrida tinha sido de 30 quadras*, o rapaz teria de ficar trinta dias no campo, cuidando de cavalos (um pastoreio, no linguajar dos gaúchos). Eram trinta cavalos pretos e mais o baio.
E ali ficou o negrinho. Como estava preso a uma estaca por uma corda, não podia se abrigar da chuva ou do sol forte. Uma noite vieram os guaxinins (uma espécie de cães selvagens) e, com os afiados dentes, cortaram o laço que prendia o baio. O cavalo saiu a galope pelo campo, e os outros o seguiram.
O negrinho, que estava dormindo, não viu nada. Quando acordou, o dia já clareando, e viu que os cavalos tinham fugido, começou a chorar. O estancieiro, avisado pelo filho malvado do que tinha acontecido, mandou dar outra surra no escravo. Surrou-o até a noite e aí mandou que fosse, na escuridão, procurar os cavalos. O negrinho acendeu uma vela e, gemendo de dor, saiu pelo campo, subindo e descendo as coxilhas. Os pingos da vela iam caindo no chão e, coisa prodigiosa, a cada pingo que caía, nascia uma luz, que iluminava o pampa. E assim o negrinho pôde achar os cavalos. Juntou-os todos e, exausto, deitou no chão e adormeceu. Ao clarear do dia apareceu de novo o filho do estancieiro, que – mas era um demônio, mesmo, aquele guri! – soltou os cavalos.
Desta vez, o estancieiro enlouqueceu de raiva. Mandou dar de novo uma surra no negrinho, mas uma surra de relho muito pior que de outras vezes. O negrinho ficou todo lanhado, quase em carne viva, o sangue escorrendo das feridas. E o perverso estancieiro mandou que o colocassem num formigueiro, para que as formigas o devorassem. E ali o deixou. Naquela noite e nas noites seguintes, teve o mesmo sonho: sonhou que tinha ficado muito rico, que tinha mil escravos, mil cavalos baios, mil filhos, um milhão de moedas de ouro.
Via Portal das Missões. |
O negrinho estava ali, de pé, a pele intata – nenhuma ferida, nada. Junto a ele, o baio e os trinta cavalos pretos. E, vigiando-os, Nossa Senhora. Risonho, o negrinho pulou no baio e saiu a galope, conduzindo a tropa de cavalos…
Para a gente da região o pequeno escravo tinha morrido no formigueiro. Mas então os gaúchos do campo começaram a falar de uma tropa de cavalos que passava à noite, conduzida por um negrinho montando um baio. E daí nasceu uma tradição, no Rio Grande do Sul: quem perdeu alguma coisa no campo deve acender uma vela para o Negrinho do Pastoreio. É o que diz a canção: “Negrinho do Pastoreio / acendo esta vela pra ti / e peço que me devolvas / a querência que eu perdi”. Querência, no linguajar gaúcho, é o lar, o lugar a que estamos ligados por laços de afeição. O Negrinho do Pastoreio mora para sempre na grande e acolhedora querência que é a bela tradição do Rio Grande do Sul.
Origens.
O Negrinho do Pastoreio é uma lenda afro-cristã muito contada no final do século XIX pelos brasileiros que defendiam o fim da escravidão, sendo muito popular na região Sul do Brasil. Em si a lenda é tipicamente gaúcha. Sua elaboração resulta da observação de modos e costumes específicos encontrados antigamente nos campos do Rio Grande do Sul, alguns dos quais vigoram até hoje. A escritora Marô Barbieri explora a capacidade ficcional e os simbolismos dessa narrativa em um passeio interessante e esclarecedor a partir de Simões Lopes Neto e de outras versões dessa mesma lenda.
O primeiro registro conhecido da lenda foi feito por Antonio Maria do Amaral Ribeiro, em 1857, que a caracterizou como "uma superstição, que tem tanto de absurda quanto de ridícula e exótica". O Negrinho do Pastoreio também apareceu nas obras de Alberto Coelho da Cunha, em 1872, e de Apolinário Porto Alegre, 1875, que por vezes é considerado o primeiro registro da lenda, e por Alfredo Varela, em 1897. Em 1906, João Simões Lopes Neto publicou a lenda em folhetim na imprensa pelotense em 1906 e, em 1913, no livro Lendas do Sul, sendo esta versão a mais esteticamente rebuscada e a mais popularizada. Além dos brasileiros, publicaram versões da lenda o escritor uruguaio Javier Freyre em 1890, o espanhol Daniel Granada em 1896 e o argentino Juan Ambrosetti em 1917.
Na versão da lenda escrita por João Simões Lopes Neto (Que serviu de base principal para a introdução do Post), o protagonista é um menino negro e pequeno, escravo de um estancieiro muito mau; este menino não tinha padrinhos nem nome, sendo conhecido como Negrinho, e se dizia afilhado da Virgem Maria. Após perder uma corrida e ser cruelmente punido pelo estancieiro, o Negrinho caiu no sono, e perdeu o pastoreio. Ele foi castigado de novo, mas depois achou o pastoreio, mas, caindo no sono, o perdeu pela segunda vez. Desta vez, além da surra, o estancieiro jogou o menino sobre um formigueiro, para que as formigas o comessem, e foi embora quando elas cobriram o seu corpo. Três dias depois, o estancieiro foi até o formigueiro, e viu o Negrinho, em pé, com a pele lisa, e tirando as últimas formigas do seu corpo; em frente a ele estava a sua madrinha, a Virgem Maria, indicando que o Negrinho agora estava no céu. A partir de então, foram vistos vários pastoreios, tocados por um Negrinho, montado em um cavalo baio.
No livro “Como Nasceram as Estrelas”, de Clarice Lispector, a história “O Negrinho do Pastoreio” , entre outras lendas, foi abordada. Nessa versão, a história é escrita para o público infanto juvenil, sendo mais branda que a adaptação de Simões Lopes Neto, e mais detalhada que outras adaptações lançadas em formato de história em quadrinhos focadas no público infantil.
A lenda o negrinho do pastoreio possui muitas cenas fortes e duras, como muitos contos de fadas europeus. Assim como esses contos, a lenda gaúcha possui algumas adaptações que abordam a história de forma branda e bastante lúdica, em formato de livro infantil ou história em quadrinho. Como por exemplo: Lendas Brasileiras da Turma da Mônica, da Editora Girassol, e Coleção Folclore Mágico, da editora Ciranda Cultural. Nessas adaptações infantis o filho do patrão, uma criança, não abordado como vilão, e as formigas são amigas do Negrinho e não o matam.
Diversos folcloristas insistem que Saci e Negrinho do Pastoreio são o mesmo mito, ainda que nimbado por uma aura religiosa. Em verdade, a única semelhança é que ambos são negros. Outros pesquisadores o entendem simplesmente como mito da servidão, interpretação calcada numa concepção racista do contexto.
Simões Lopes Neto, em 1906, introduziu N. Sra. Aparecida como madrinha do Negrinho. Após ser duramente açoitado e expulso da fazenda até que retorne com os cavalos, o rapaz toma uma vela de seu altar. E cada pingo de cera que caia no chão se acendia como uma tocha. Ao ponto dos galos cantarem achando ser alvorada.
Mesmo com a intercessão divina, a injustiça dos homens não permite o sucesso do Negrinho. O filho do estancieiro espanta os cavalos e culpa o menino. O homem, desta vez, o açoita quase até a morte e abandona seu corpo sobre um formigueiro, para que os insetos lhe devorarem até os ossos.
Após ter sonhos terríveis com o Negrinho, o fazendeiro volta ao formigueiro três dias depois. Lá, encontra o Negrinho montado em seu cavalo baio, acompanhado de sua madrinha. As formigas passeavam pelo seu corpo, mas não o faziam mal. Ele havia se tornado um encantado.
Ano após ano, ele retorna ao formigueiro onde relembra seu martírio durante três dias. Depois, com as bençãos de Nossa Senhora, volta a correr o mundo com sua tropilha invisível, levando piedade aos que não recebem nenhuma. O Negrinho traz esse mito da esperança, que mesmo diante do poder e da violência, nunca pode morrer.
No Cinema.
O personagem foi interpretado por Grande Otelo no filme O Negrinho do Pastoreio, de 1973, dirigido por Antonio Augusto Fagundes.
Sinopse: Interior do Rio Grande do Sul, por volta de 1827. Numa estância de propriedade de um avarento que vive com a enteada, todos os escravos devotam-lhe ódio, à exceção de um negrinho que, em sua ingenuidade, não percebe a maldade do senhor. Chega à região, acompanhado de um negro livre, um gaúcho incumbido de domar potros. A moça se apaixona pelo forasteiro e o negro desperta nos escravos anseios de liberdade. O negrinho perde dois potros no pastoreio e é açoitado até a morte. Vingando-se, castelhanos atacam a fazenda. Os dois forasteiros e a moça aproveitam-se da confusão para abandonar a região.
*Quanto que é 1 Quadra
Escrevendo esse Post me veio a dúvida, quanto é 1 Quadra? fiz meus cálculos para saber quantos Metros (Ou Quilômetros) o Negrinho correu, na corrida que acabou perdendo.
Quadra é uma antiga medida de comprimento. Segundo a Wikipédia (usada como base para a maioria de minhas pesquisas) Quadra ou quarteirão é a menor área de espaço urbano delimitada por ruas, rios ou avenidas, caracterizando a unidade básica de formação destes espaços.
O tamanho de um quarteirão ou de uma quadra pode variar muito, mas frequentemente em cidades brasileiras podem ser vistos quarteirões de 10.000 metros quadrados (100 metros em cada lado). Neste último caso a área delimitada corresponde a um hectare.
10.000 Metros = 10Km Estamos falando de metros quadrados aqui e de uma ponta a outra (Em Linha reta) da Quadra [ou Hectare] seria de 2,5Km X 30 = 75 Km.
Ou seja foram 75 Km de corrida (Isso é se correu em linha reta, por que se for considerar que eles circularam, 1 quadra 30 vezes, Km aumenta.
Fontes.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Negrinho_do_Pastoreio
http://www.portaldasmissoes.com.br/municipios/garruchos/noticias/view/id/1652/o-negrinho-do-pastoreio.html
http://www.historiadocinemabrasileiro.com.br/o-negrinho-do-pastoreio/
https://nuhtaradahab.wordpress.com/2012/07/10/folclore-brasileiro-negrinho-do-pastoreio-recontada-por-moacyr-scliar/ “História recontada por Moacyr Scliar, com base no folclore gaúcho e na narrativa de Simões Lopes Neto”.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Quarteir%C3%A3o
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