domingo, 28 de outubro de 2018

Enciclopédia dos Mitos e Lendas do Brasil e das Lendas Urbanas: A Perna Cabeluda.

Algo que e bastante sabido por aqueles que escutam sobre as Lendas Urbanas é que as mesmas não tem um autor fixo. São passadas de boca em boca, em um grande telefone sem fio. Nesta dobradinha de Enciclopédia dos Mitos e Lendas do Brasil / das Lendas Urbanas, falaremos da Perna Cabeluda.

Perna Cabeluda?

Sim, Perna Cabeluda, assim como o Cabeça Satânica, e um membro avulso, amaldiçoado que pula. Se já é curioso uma perna independente, capaz ainda de matar com seus poderosos chutes, rasteiras, enfim, coisas de que uma perna é capaz.

Entre as lendas urbanas mais curiosas do Nordeste está sem dúvida a da Perna Cabeluda, uma entidade sobrenatural que teria assombrado as ruas do Recife durante a década de 1970. Aparecendo onde menos se esperava, esta criatura era o oposto-simétrico do Saci Pererê. Ou seja, era uma perna-sem-pessoa, em vez de uma pessoa-sem-perna. Surgia pulando, atacava os transeuntes, dava chute em todo mundo, e depois fugia pulando.

A lenda, que tirou o sono das crianças (e adultos que nunca admitirão) no Recife dos anos 70, cresceu a partir daí. Alguns alegavam que o pé tinha unhas grandes e podres. Outros, que o pedaço de corpo não era sequer humano. As vítimas eram cegas de súbito na madrugada e sofriam ataques nas ruas – e, mesmo caídas, continuavam a ser surradas.

Estes ataques foram assuntos de alguns folhetos de cordel como "A Perna Cabeluda" de Tiúma e São Lourenço de José Soares,  "A Véia debaixo da cama e a Perna Cabeluda" de José Costa Leite e "A terrível história da Perna Cabeluda" de Guaipuan Vieira. Além de uma HQ própria – A Rasteira da Perna Cabeluda, publicado pela editora Bagaço.

Na versão do escritor de cordéis Guaipuan Vieira, a perna possuía um único olho no joelho, boca com dentes de felinos, nariz pontudo e língua com ponta cortante, unhas afiadas e um esporão no calcanhar.



TERRÍVEL HISTÓRIA DA PERNA CABELUDA

(Prenúncios da Besta-Fera)
Autor: Guaipuan Vieira

Categoria: Literatura de Cordel - 32 estrofes - 8 páginas
Instituição: Centro Cultural dos Cordelistas - Cecordel
1° Edição: 1998, 2° Edição: 1999.

Santo Deus Onipotente
Venho rogar vossa ajuda
Pra afastar assombração
De todo mal nos acuda
Principal desse fantasma
Que é a Perna Cabeluda.
É um bicho horripilante
Que na noite entra em ação
Tem dois metros de altura
E pula como cancão
No joelho tem um olho
Acesso que nem tição.
O nariz é bem pontudo
Além da boca rasgada
As prezas são dum felino
Língua com a ponta cortada
Tem barbicha que nem bode
Cada unha é envergada.
Faz um barulho medonho
Como chocalho de cobra
É o rangido dos dentes
Da energia que sobra
Limpa o nariz com a língua
Dança fazendo manobra.

Ainda tem no calcanhar
Um afinado esporão
Cuja cor avermelhada
Reluzente a um medalhão
No tornozelo uma gola
Como estivera em prisão.
Na canela tem um chifre
Com uma luz bem na ponta
Uma espécie de lanterna
Pra andar por onde afronta
Fazer vítima onde passa
Que já se perdeu a conta.
Tem enorme cabeleira
No lugar que foi cortado
Que sacode sobre a perna
Girando de lado em lado
De jaguar são as orelhas
E há pelo aveludado.
Pense então na coisa feia
Multiplique o seu pensar
Pois é assim que a coisa
Anda em noite de luar
E também na escuridão
Pra poder se ocultar.

Quem já viu conta que a perna
Chega mansa e de repente
Cisca o chão e fala coisas
Que não há um ser vivente
Pra decifre a linguagem
Que repassa no presente.

Dois ônibus da Marimbá
Do Piauí essa empresa
Se chocaram nessa curva
Que foi a maior tristeza
Não escapou um cristão
Só de pensar dá fraqueza.
E depois dessa contenda
Dá um assovio fino
À noite entra em silencio
Como ordena seu destino
Até o galo no poleiro
Esquece o sagrado tino.

Uma vítima teve a perna
De seu corpo decepada
Dizem que ela criou vida
Num monstro foi transformada
Na mata ficou vagando
Procurando sua estrada.
Por onde passa o vivente
Fica imobilizado
Falta as pernas pra correr
É um momento aperreado
Só pra vê que neste mundo
Tudo um pouco é encontrado.

Antes de achar caminho
Pra sua nova paragem
Em todo aquela região
Ficou fazendo visagem
Assombrando caçador
E vaqueiro de coragem.
Muitos contam que a origem
Vem duma história passada
Dum acidente de ônibus
Em região povoada
Pra bandas do Piauí
Curva do “S” chamada.

Pois chegou no Ceará
Seguindo um caminhoneiro
Que vinha pra Canindé
Só conduzindo romeiro
Depois foi a Fortaleza
Promover o seu desterro.

A Perna anda descalça
Vagando em noite escura
Tem um rastro muito grande
Que não é de criatura
Dizem até que um sapato
Na cidade ele procura.

Percorre a periferia
Onde sente muita estima
O povão é seu chamego
Espécie de grande ima
Que através dessa gente
Mantém a fama de cima.
Muitos fazem confusão
Aumentando mais o medo
Que a Perna também vaga
Quando o dia é muito cedo
Nas manhãs de sexta-feira
Zombando de seu segredo.

Não existe corajoso
Chamado desafiante
Pra enfrentar a essa Perna
Por ter jeito horripilante
Assim vara a madrugada
Cada vez mais triunfante.
Em noite de lua cheia
Ela fica mais nervosa
Vaga na areia da praia
É muito mais perigosa
A razão é o sofrimento
Da tal vida desastrosa.

E vagando estrada afora
Já provocou acidente
Pois fez carro abalroar
Pondo em risco muita gente
No aeroporto aeronave
Sair do pouso decente.
Circula todo o Nordeste
Promovendo temporada
Por onde passa o terror
Tem uma história contada
Nunca peça para vê
A Perna mais assombrada.

Da mesma forma já fez
Na lagoa, o pescador
Deixar o peixe na isca
E gritar: Nosso Senhor!
Daí - me força nestas pernas
Pra fugir deste terror.

Esta Perna Cabeluda
Bota mesmo pra quebrar
Até na santa igreja
Já andou a perturbar
Fez o padre e o sacristão
Vir à missa abandonar. Tudo isso ela frequenta
Numa forma mais oculta
Observa o ser humano
Talvez fazendo consulta
Mas depois desta visita
Fazer mal é que resulta.
Fez mulher que trai marido
Mudar seu comportamento
Ser caseira e boa esposa
Religiosa ao contento
Da mesma forma o traído
Esquecer o sofrimento.

Dizem que é a besta-fera
Que já se encontra presente
Circulando este planeta
Cada vez mais decadente
Onde o ódio e a violência
Se vê muito mais crescente.
Fez cabra namorador
Esquecer o pé de muro
O farrista voltar cedo
Prevenindo mais seguro
Com medo de vê a Perna
E passar por tal apuro.

São sinais do fim da era
A tristeza é mais aflita
Aparições e desastres
É algo que multiplica
A peste afronta o planeta
Na terra a paz desabita.
Mas a Perna é vaidosa
Tem paixão e boemia
Visita festas de roque
Em clubes da burguesia
Também gosta de seresta
E da boa churrascaria.

Pois rezar é que nos resta
Pra livrarmos da aflição
Mas que haja com firmeza
Santo Deus no coração
Ao contrário nós seremos
Vítimas da tribulação.

A lenda se tornou símbolo da cultura recifense e durante anos levou crianças a olhar debaixo da cama antes de dormir. Mas, diferentemente da maioria das lendas urbanas (ou lendas), essa é uma cujo autor conhecemos: Raimundo Carrero, jornalista do Recife e autor de obras literárias premiadas.

Quem Conta um Conto, Aumenta um Ponto.

São muitas as versões que tentam explicar o surgimento dessa peculiar lenda urbana pernambucana que se espalhou pela cidade do Recife em meados da década de setenta. O povo falava de um ser sobrenatural, ou melhor, parte de um ser, já que a assombração era apenas uma perna cabeluda. Muitos atribuem a autoria dessa história ao radialista Jota Ferreira que teria noticiado no seu programa de rádio a história de um vigilante que fora atacado por uma perna cabeluda enquanto fazia sua ronda. O escritor Raimundo Carrero, que na época trabalhava com Jota Ferreira, confirma essa versão mas esclarece que a história foi narrada em tom de brincadeira.

Foi cantada em verso e em prosa. Apareceu como protagonista em folhetos de cordel como A Perna Cabeluda de Tiúma e São Lourenço de José Soares, inclusive um em que ela enfrentava outra criatura mítica: A Véia debaixo da cama e a Perna Cabeluda de José Costa Leite. Apareceu também em um vídeo de Marcelo Gomes, A Perna Cabeluda (1995). Figurou em shows de Chico Science & Nação Zumbi: Chico dançava com uma perna de pano estufada, e depois a jogava no meio da platéia.

Nos idos da década de 1970, Carrero, que trabalhava no Diário de Pernambuco, afirma que um companheiro de redação chegou afoito ao trabalho durante a noite. Dizia ter visto, embaixo da cama que dividia com a esposa, uma perna cabeluda. “Mas e o tronco?”, indagaram os amigos, “Não tinha”, respondeu, com toda a sinceridade.

Raimundo Carrero, o pai da Perna Cabeluda. Créditos: Aventuras na História.
Não é o que parece (dizemos nós, não a esposa). Como relata Raimundo à AH, os jornalistas da época eram boêmios e gostavam de contar histórias mirabolantes uns para os outros. Era uma piada desde o começo.

O relato ganhou status de estrela com um empurrão do regime político da época. “Como vivíamos sob a ditadura militar e muito conteúdo não podia ser publicado devido à censura, o então editor do Diário de Pernambuco, e hoje ministro do Superior Tribunal de Justiça, Og Marques Fernandes, incumbiu a mim uma coluna policial com casos tido como absurdos. Surgiu aí a história da Perna Cabeluda”, contou Carrero à AH. O sucesso foi imediato. No dia seguinte, a Perna já era citada em programas radiofônicos de grande alcance. Pessoas machucadas – às vezes com ossos quebrados – apareceram dizendo ter sido atacadas pelo membro que agia de forma totalmente autônoma.

E uma noite, entre uma música e outra deram uma notinha humorística, mais ou menos assim:
“Pois é, meu amigo, a vida no Recife não anda nada fácil!… Chega agora à nossa redação a notícia de que Fulano de Tal, guarda-noturno, chegou em casa depois de uma jornada de trabalho e deitou-se para dormir ao lado de sua esposa. Ouviu um barulho, e ao olhar para baixo viu uma perna cabeluda embaixo da cama!”
Raimundo – que fez parte do Movimento Armorial, criado por Ariano Suassuna na busca por criar arte erudita a partir da popular – tem uma teoria desconfortável para explicar o fenômeno da Perna Cabeluda: as brigas entre os maridos e os amantes de suas esposas.

A intenção era sugerir, com a imagem da perna cabeluda, a presença do "Ricardão", do amante da esposa. A nota provocou muitos risos, e no dia seguinte, ele voltaram à carga. “E atenção, minha gente… Sicrano de Tal, morador da Imbiribeira, chegou em casa de viagem, e para sua surpresa viu a perna cabeluda fugindo pela porta da cozinha!” E aí não parou mais. Usada inicialmente como uma sinédoque visual (a parte pelo todo), a perna acabou ganhando vida própria.

Porém a notícia foi interpretada pela população como uma criatura assombrosa em forma de perna animada e vários boatos de populares sobre a aparição foram relatados. Estes relatos geralmente diziam sobre ataques noturnos dentro de casas, onde a perna se escondia em guarda-roupas e debaixo de camas ou até mesmo surpreendendo pessoas nas ruas.

Isto não quer dizer que qualquer coisa inventada vire automaticamente uma lenda. Neste caso específico virou porque a imagem resultante ficou ao mesmo tempo absurda e engraçada, ou pelo menos assim pareceu à galera onde a história começou a circular (ouvintes de rádio dos subúrbios recifenses). Imagens e figuras semelhantes são lançadas diariamente no caldeirão cultural. É um processo aleatório. Umas pegam, outras não. “Cultura popular” talvez se defina por este aspecto aleatório, onde não se pesquisa, não se planeja, e as criações dão certo meio que por acaso.

Fontes.

http://www.orecifeassombrado.com/assombracoes/a-medonha-perna-cabeluda/

http://pt.fantasia.wikia.com/wiki/Perna_Cabeluda

http://www.jornaliadoed.com.br/2011/07/nordeste-surreal-lenda-da-perna.html#.U47uNoZCL3w

https://universofantastico.wordpress.com/2008/09/04/a-perna-cabeluda/

http://portal-dos-mitos.blogspot.com/2015/07/a-perna-cabeluda.html

https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/perna-cabeluda.phtml

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